Corpo de festim

Corpo de festim Alexandre Guarnieri




Resenhas - Corpo de festim


2 encontrados | exibindo 1 a 2


Krishnamurti 19/08/2016

Roleta-russa com balas de festim
Roleta-russacom balas de festim


Por: Krishnamurti Góes dos Anjos(*)


A Editora Penalux deu recentemente a público, em 2ª edição, a oportunidade da leitura de “Corpo de festim”, livro de Alexandre Guarnieri originalmente editado em 2014 e premiado na 57ª edição do Prêmio Jabuti. A edição que ora se apresenta é enriquecida com dois estudos críticos. “No corpo do texto: A poesia atual (e real) de Alexandre Guarnieri”, assinado por Mauro Gama e “Nosso corpo de festim”, por Jorge Elias Neto. Como se não bastasse, Amador Ribeiro Neto, Furio Lonza, Glauco Mattoso e Mariel Reis (orelhas e contracapa) emitem breves apreciações sobre o autor e sua obra. Vem portanto muito bem credenciado este livro. Nem sempre a unanimidade é burra. Senão vejamos.
Com extraordinário domínio da linguagem poética o autor disseca biológica e psiquicamente o corpo humano. Este seu foco. A admirável máquina na qual nos foi dado viver, e que sofre os embates e interações entre corpo e mecanismo social no qual atua.
O livro surpreende-nos com uma linguagem formidável, articulada em múltiplos e diversos significados. Ante nossos olhos se descortina o maravilhoso espetáculo da vida desde sua gênese em um átomo de carbono, à fecundação humana, sua gestação, o nascimento, a vida atuante que não cessa de transformar-se e regenerar-se, e a morte, sobrevindo a decomposição do corpo físico. Tudo numa multiplicidade de nuances digna de registro, posto que urdida em prosa e poesia a se ajustarem, se complementarem em transfusão causando no leitor uma grande sedução em virtude da maturidade e técnica com que se realiza.
É necessário todavia, concentração, atenção, esforço de pensamento. Se o leitor se submete a esta cumplicidade com a obra sai recompensado, revigorado de compreensão humana disposta nos três capítulos em que a obra se divide. O capítulo hum(sic) com o sugestivo título de “Darwin não joga dados. Mallarmé sim”, traz-nos poemas que tecem um paralelo entre os mistérios da gênese da vida humana e da gênese do próprio livro. Poemas com grande carga informativa e intertextualidades várias. O capítulo dois: “Corpo-só-orgãos” apresenta poemas com títulos como: (/no filtro: (o baço), (os rins), (o fígado)/), > e, >(os pulmões)< dentre outros que são exemplos de como é vista pelo autor cada uma dessa 'partes' humanas a interagir com a vida do ser. Transcrevemos pequeno trecho do poema )) os dois ouvidos ((.

“… em dois radares
orelhas são como conchas de cartilagem captando
comprimentos de onda; em variada oferta: ouve-se
música clássica, rádio de pilha, esporro em família,
punk rock, voz de aeroporto, gemido íntimo, confissão
de assassino, chiado, ruido, os gritos do vizinho,
conselho de amigo (porque a voz da consciência é
a de um grilo enquanto anjo e diabo, cada qual sobre um
ombro, se digladiam num combate apocalíptico?);”

O capítulo três: Vigiar e punir comporta poemas com títulos extremamente sugestivos: “biótipo”, “pílula”, “cotidianamente” e “retrogressão” (só para citar alguns), que representam a essência dessa interação – quase sempre negativa no estágio atual da humanidade -, entre corpo físico e corpo social. O poema +necropsia+ poderia apresentar-se como o final inexorável. A extinção completa. Mas não é o que acontece nessa anatomia do ser. Antes de tecermos algumas considerações sobre o poema em prosa “mandala de houdine” que fecha o volume, destacamos dois momentos (pela síntese interpretativa que revelam) dos estudos críticos publicados à guisa de posfácio. Reproduzimos porque é vital para chegarmos à nossa impressão crítica. O primeiro de Mauro Gama quando afirma que o autor se debruçou sobre “um recorte histórico em que as religiões ou se pervertem nos deleites do sexo, ou se voltam para a traição chamada 'teologia da prosperidade', ou ainda para a rapina e guerra de conquista, em que a reflexão filosófica ou se omite ante os desafios teóricos cada vez maiores, ou se deixa cooptar pelos gigantescos interesses econômicos em causa, ficam em destaque, na crista do cotidiano, os fetiches tecnológicos e fisiológicos, dando origem a uma espécie de novo hedonismo de rés-do-chão e superficialidade. As modernas sociedades de massa, e de consumo, afastam-se das artes, cultivam mais os resultados e técnicas da ciência do que seu desenvolvimento, e vão-se tornando o falso paraíso do bicho-homem quase exultantemente destituído de senso crítico, devotado à mesa, à cama, às distrações do turismo e do desfrute imediato. É nesse contexto que se movimenta a sensibilidade de Alexandre Guarnieri disposto a dissecar – como artesão da palavra – o embasbacante mundo que nos cerca.”
Muito bem. Fechamos aspas para abrir outras, essas no texto de Jorge Elias Neto: “Passamos a contemplar um mundo sem deus, sob um teto espelhado e um piso de excrecências. Alexandre Guarnieri leva ao extremo a visão de muitos poetas contemporâneos. Cansados de tantas almas dissecadas, e não pouco idealizadas, destrincha o corpo, de dentro para fora. Rompe as falsas amarras e os cadeados viciados correndo o risco da impermanência, da extinção do ideal humano”.
Isto posto, vejamos o que nos diz “mandala de houdini”, ali onde a perspectiva poética parece se aprofundar na confissão de um desespero existencial:

“uma redoma, cujo âmago equidistante a qualquer ponto escolhido na linha do perímetro, contivesse prisioneira (imobilizada por correntes pesadas) a mais egoísta das partículas, ali, isolada num labirinto de espelhos, hiperexposta apenas a si própria, e entretanto o oroboro contorcido no centro de um picadeiro de marketing (ou do projeto meramente calculado por qualquer das grandes agências de publicidade), oferecida às massas como único produto de consumo, que a si mesmo se consuma para o deleite sadista de todos os olhares do mundo;”
Aí se inicia, a nosso ver, um questionamento de cunho espiritual no cerne da questão corporal. Como evadir-se?

“paredes de células me encerram na vigília das sensações que se elevam à quase exaustão do estar em mim, enquanto criador deste específico livro de poemas cujo título corpo de festim revisita a minha própria sina de estar vivo e produtivo”.

Eis o ponto crucial, onde não há mais o “ecstasy” do fluido-promessa-de-gozo. Não há mais nada além de si mesmo. Existe, repetindo a pergunta final de Jorge Elias Neto, transcendência possível a esse homem corporificado em festim, que quer DESAPARECER DE VEZ e em letras maiúsculas? O homem acorrentado se debate, tem ímpetos suicidas, suspeita do 'outro lado' que também desconhece, e, no entanto, continua a viver…
Na evolução darwiniana enxergamos apenas a progressão das formas orgânicas em seu aspecto meramente físico. Fugiu-nos o mais profundo fio condutor da evolução que nos levaria a assimilar definitivamente outro fato inconteste. Nos órgãos sensoriais opera-se também, e continuadamente, a elevação das vibrações ambientes em vibrações de ordem superior; através dos ouvidos, o som se torna música; através dos olhos, a luz se transforma em beleza; através dos sentidos o embate das forças ambientes constrói o instinto e a consciência, fases primeiras de nosso psiquismo que se plasma num processo de contínua elaboração. Da matéria/energia em suas formas inferiores surgiram as elevadas formas de sensação, sentimento e pensamento. Eis o mais alto ponto da escala evolutiva de nosso universo, a máquina mais complexa, delicada e promissora. A mente humana onde se manifesta uma realidade que a ciência propositadamente ignora: a condição espiritual do homem.
Mas ocorre também, que deus não joga dados. Ocorre, que o deus-morto, esse enigma que fala desde sempre aos moucos ouvidos humanos (que só querem perceber a repetição de uma dúvida equívoca), também não brinca de roleta russa. A humanidade pobrecita hoje tão carente do sentido das finalidades supremas, num mundo de fome espiritual e de gerais incertezas, num mundo de catastrófica desorientação, anda a um passo do desespero do sem sentido…
Ao cabo dessa obra, fica-nos o sentimento de que estivemos a apreciar o corpo-livro escrito por Alexandre Guarnieri que mais uma vez, e ao seu modo, nos alerta. Para além de nossa admiração, merece esta obra, atenta leitura e ponderada reflexão.
Agosto/2016




(*) Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor e pesquisador. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas literárias no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho –Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional - Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.
comentários(0)comente



Adriana Scarpin 12/09/2018

ânus humano ( . ) ônus santo
"acompanha o corpo este túnel obscuro,
dúbio/ lúbrico, sujo/ úmido, ao
longo da coluna – quando ereto, sua
verticalidade se sujeita à força da gravidade
e quando não, há tão somente – silenciosa
– a peristalse; na boca é seu início, e
por aí se precipitam alimento (líquido/
sólido) e sexo (um pórtico, em colunata,
comporta os dentes, todos pelo lado
de dentro), tem no ânus o mais íntimo
destino (e é sabido que também mastiga o
intestino); do uso chulo se evocam as
mais transgressoras e ráficas imagens
da bíblia sagrada retraduzida, d’algum
idioma babilônico, ou na língua solta de
sodoma & gomorra: o sopro divino fosse
tão somente gás metano proveniente de
um orifício no cio, o meteorismo pelo anel
do delírio, ânus sanctus tal cloaca larga
sob ancas fartas, o buraco sacro abaixo do
qual descansaria o peso do saco escrotal
do diabo, comendo-lhe o rabo, e contra o
qual mergulhasse ainda o incisivo tridente
luciferino ou qualquer outro objeto
longo e pontiagudo/ e o laborioso barro primordial
(o chão onde pisaram eva, adão, o éden, a terra)
fossem tão somente a poeira
das estrelas, compacta à fôrma dos planetas,
e de todas as outras esferas outrora nascidas
da mesma labareda – se misturam yin e yang no big
bang – como um eterno jacto de merda, tendo jorrado
o mundo fosse, enfim, o fiat lux no
fim do túnel, lá, onde nenhum sol (na bunda,
afinal) devesse (ao menos tradicionalmente) iluminar,
mas duma luz estranha e curva que só
einstein pudesse flagrar em cálculos, no
decúbito ventral de infinitesimais centímetros cúbicos,
não interna, mas avessa, de fora pra dentro,
ou inversa, à fórceps & ósculos lambuzando a vaselina/ fezes
& almíscar fossem a tinta do livro mais antigo;
o maior poro essa lacuna obrigatória (zona erógena),
pelos puritanos se suporia inóspita,
muito embora em ambos os sexos a fisiologia
admita a massagem no períneo, mas só nos homens,
se extraia da próstata, pelo nervo pudendo,
e com algum ímpeto, um outro estímulo que começado pelo esfíncter,
reclame da lama anal esse binômio ambíguo, um
doloroso alívio, entre a punição e o prêmio."
comentários(0)comente



2 encontrados | exibindo 1 a 2


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR