Andreia Santana 26/02/2024
Quando a vida, em vez de imitar, despreza a arte
Vamos comprar um poeta, do português Afonso Cruz, conta a história de uma família cartesiana e pragmática que decide comprar um poeta de estimação. No mundo distópico onde a história acontece, o utilitarismo é a nova ordem e somente as profissões e atividades relacionadas ao bom desempenho, que geram lucro e favorecem a excelência, a razão e a precisão matemática é que são valorizadas. As ciências humanas, as subjetividades de todo tipo e a individualidade, por sua vez, são desprezadas. Poetas e artistas em geral são como pets exóticos para as bem sucedidas famílias de cidadãos modelo e que geram dividendos, inclusive afetivos, já que até os interesses amorosos são mensurados em percentuais e estatísticas.
A crítica ao universo dos coaches, ao mundo corporativo e à mecanização da vida e das relações são autoexplicativas. O autor se inspirou na crise financeira vivida por Portugal, em 2016, para compor sua história. Durante a crise, o Ministério da Cultura do país foi extinto e o autor concebeu uma realidade paralela onde a arte é vista como futilidade e desnecessária. No Brasil, em 2019, o Minc foi rebaixado para uma Secretaria de Cultura, recuperando o status de ministério só quatro anos depois, em 2023. Para os brasileiros, que assistem há décadas sucessivos governos desvalorizarem ou literalmente tentarem extinguir projetos culturais, a distopia de Afonso Cruz deixa aquele travo na garganta.
Nenhum dos personagens do livro tem nome, já que nessa sociedade altamente eficiente, as pessoas recebem códigos, como os números em série das máquinas, em vez de nomes 'inúteis'. A história é narrada pela Filha pré-adolescente, que é quem pede ao Pai para comprar um poeta de estimação. Os poetas, junto com outros nefelibatas profissionais, são vendidos em lojas que anunciam artistas com as mesmas estratégias das pet shops para divulgarem filhotes de cães e gatos, inclusive com dados sobre a docilidade e o nível de bagunça de cada tipo. Assim, enquanto os pintores e escultores costumam fazer uma grande confusão de tintas, telas e argila, sujando a casa toda, poetas e demais escritores são silenciosos e meio avoados.
Além da menina e desse pai que funciona como o capitalista-chefe do núcleo familiar que, por sua vez, funciona nos moldes de uma eficiente fábrica, há ainda um Irmão meio encostado e que só pensa em marcar pontos positivos com as garotas; e a Mãe, dona de casa exemplar do tipo submissa, que aceita seu lugar de provedora das necessidades básicas de alimentação e higiene do capitalista-chefe e dos filhos.
A chegada de uma criatura totalmente imersa no mundo dos sonhos, das palavras e das abstrações causa uma reviravolta na família. Em paralelo, os negócios do pai perdem eficiência e liquidez, levando o núcleo familiar a pedir concordata e se equilibrar na beira de uma recuperação judicial ou abrir falência de vez.
Dos móveis às roupas dos membros da família, tudo é patrocinado por marcas, uma alusão certeira ao mundo dos influenciadores digitais e aos conteúdos monetizados. Aquele poeta quase maltrapilho, como um Carlitos recém-saído de um filme dos anos 1930, com as roupas surradas e sem patrocínio, representa a colisão de dois mundos.
O poeta embaralha as percepções de realidade da menina narradora, fazendo-a enxergar metáforas e belezas sutis onde antes ela só via rigidez, números e gráficos. É muito engraçado testemunhar a desconstrução do pensamento utilitarista e a conversão da menina em uma 'inutilista', nome dado na história às pessoas que preferem as atividades simbólicas ao utilitarismo.
A menina, pouco a pouco, percebe um mundo de possibilidades, o que de certa forma é uma declaração de amor do autor às artes em geral e à literatura, em particular, principalmente à poesia. Com a convivência, ela entende que versos são mais revolucionários e perigosos que a certeza fria dos números, justamente porque é nas figuras de linguagem que nossa existência se desenha com mais nitidez.
Com seus versos, o poeta desperta os sentimentos da menina, que de autômato se converte, finalmente, em criatura humana. Lançando versos aqui e ali - e ao pé do ouvido da mãe - ele provoca uma insurreição. Essa dona de casa cansada de ser explorada pelos demais integrantes da família, se rebela, se liberta, e encontra seu caminho na imperfeição e imprecisão das palavras e dos sentimentos.
Interessante é ver a reação do pai, que se mantém um empedernido utilitarista, desprezando tanto as lições do poeta quanto a insurreição da mãe e da filha. O filho, por sua vez, vê no poeta apenas um meio de alcançar o coração de uma garota, mas sem de fato absorver a poesia enquanto estado de espírito e enlevo.
Com sua novela de pouco menos de 100 páginas, Afonso Cruz nos lembra, nesse mundo cada vez mais tecnológico e automatizado, que a poesia é como a vida, cheia de incertezas, tentativas, erros e belezas para quem tem interesse em desvendar e não apenas em ver. É na fluidez que existimos mais felizes...
Ficha Técnica:
Vamos comprar um poeta
Autor: Afonso Cruz
Editora: Dublinense, 2020
96 páginas
R$ 44,04 (livro físico, Amazon) ou no Skeelo, para assinantes
**********
*Livro lido para o desafio #50livrosate50anos, uma brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até lá e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. Vamos comprar um poeta é o livro 16 do desafio.
site: https://mardehistorias.wordpress.com/