Nelson 04/02/2018
Cyber Cultura
Acredito que a primeira coisa a ser dita é sobre o formato do livro. A introdução o apresenta como uma obra lançada no ano de 2109, que será lido por leitores que desconhecem diversos aspectos de nossa humanidade, cultura e cotidiano, pois com o advento da Convergência Neuro Digital houve uma profunda alteração em nossa forma de vida. Nesse futuro, entende-se que a humanidade como conhecemos agora não existe mais, por isso a obra é inteira comentada nos rodapés, indicando diversas referências para que esse leitor [do futuro] tenha onde buscar mais informações através de hyperlinks.
A estrutura de Os Dias Da Peste varia ao longo da história. A primeira parte, ou Diário Híbrido, tem o formato ora de blog, ora de anotações feitas a mão. As anotações manuscritas não estão ali por acaso e elas fazem uso de uma fonte que simula a escrita manual. Nesse momento do livro, somos apresentados ao cotidiano de Artur que, por trabalhar na área, se relaciona constantemente com os estranhos “defeitos” pelos quais passam os computadores no ano de 2010.
Depois, em O Blog, com a sociedade ainda conhecendo os efeitos de conviver com as inteligências construídas (IC), temos um olhar mais reflexivo do personagem, que escreve sobre filosofia, ficção científica e tecnologia em seu blog. Através das mudanças que ele percebe na faculdade em que leciona e das notícias que discute com sua IC, acompanhamos o impacto desses eventos na sociedade e na política.
Por último, em O Podcast, temos uma situação bem diferente do início do livro. Artur está em um emprego novo e investiga, junto de sua nova colega de trabalho, eventos decorrentes da interação dos humanos com as máquinas inteligentes. Nesse último momento do livro, há romance e bastante suspense. O final tem um forte impacto e deixa algumas perguntas.
É fácil perceber o domínio que Fábio Fernandes tem sobre à escrita, conduzindo seu romance de maneira bem elaborada e com certo humor. Até arrisco dizer que estamos diante de um obra essencial postcyberpunk para quem deseja compreender nossa produção nacional. E não digo apenas pelo seu conteúdo bem trabalhado, mas também por se diferenciar como uma literatura de qualidade ambientada em nosso país, que também se diferencia do já aclamado Santa Clara Poltergeist (1991) em vários aspectos, principalmente na linguagem, e ainda consegue se distanciar da velha forma de se fazer cyberpunk.
Uma das características que mais me agradaram em Os Dias Da Peste, foi a sensação de “lugar comum”, uma brasilidade muito bem-vinda ao texto, sem recorrer aos exagerados clichês de brasileiros alegres ou malandros, nem outros esteriótipos sem o menor sentido. As reações de Artur são como a de qualquer cidadão comum. Sendo assim, o personagem consegue transmitir suas expectativas e também o cenário cotidiano do Rio de Janeiro de maneira bem realista. Em certos momentos, ele e seu amigo, Sant’ana, transmitem tanta impaciência diante de certas situações ou determinados assuntos, que conseguiram me irritar.
Os comentários de rodapé que permeiam o livro são dignos de nota. Vi opiniões sobre eles entreterem e criarem humor, mas também vi comentários sobre o fato de, às vezes, não acrescentarem nada à trama, por exemplo, quando apenas indicam que não entenderam a referência. Em minha opinião, eles criaram um ar de autenticidade tecnológica de um futuro que desconhece grande parte de seu passado. Entretanto em alguns momentos eles me confundiram, pois não consegui identificar um padrão sobre o que essas inteligências futuras conseguem ou não interpretar do passado e de nossas expressões. Da maneira que o livro termina, é impossível especular muito sobre o que teria acontecido a seguir com a humanidade e como tanta informação se perdeu. O jeito é esperar pelas continuações!
Há momentos para pausas reflexivas e explicações tecnológicas sem grandes mudanças de ritmos. Na última parte, O Podcast, como grande consumidor desse tipo de mídia, senti um certo estranhamento, mas como o próprio autor disse uma vez, “algumas coisas não ficaram muito podcastáveis“. Na verdade, tudo acontece como um áudio-diário, mantendo as informações de datas e registrando seus relatos como nas demais partes. A maneira informal como Artur se expressa combina com o estilo da narrativa e o contexto de blogs.
Há um mix tecnológico em Os Dias Da Peste. Certas referências já estão datadas e funcionam como uma fotografia da cibercultura do início dos anos 2000. Mas não pense que isso retira o mérito do romance. Afinal, mesmo William Gibson parece datado hoje em dia. Ademais, outras tecnologias apresentadas são bem atuais e, principalmente na última parte, bem futuristas. A maior especulação do livro se dá na simbiose entre homens e máquinas e, ao que tudo indica (pelos rodapés e introdução), eleva nossa espécie a um patamar pós-humano.
Acho que poucos leitores terão a mesma experiência que tive durante minha leitura, pois coincidentemente ou não, meu smartphone começou a apresentar defeitos, ignorando meu comandos, assim como os eletrônicos descritos em Os Dias Da Peste. E mais do que isso, no dia em que lia a cena do blackout, aconteceu um em minha cidade. Dificilmente terei outra experiência assim com um livro!
Edições diferentes:
A primeira edição, por ser uma publicação da Tarja Editorial, divide um mesmo problema de outros livros da editora. As páginas brancas e finas, com grande transparência em algumas condições de luz, podem ser um problema para alguns leitores, assim como as fragilidade do papel. O prefácio foi escrito por Adriana Amaral. Como já tenho conhecimento sobre as pesquisas realizadas por ela acerca do cyberpunk, me senti “em casa” ao ler o prefácio, mas recomendo a quem já terminou a leitura, ler as palavras de Adriana novamente.
Para a segunda edição, apesar da oportunidade de alterar datas e outros detalhes da trama, como tecnologias e softwares, o autor optou por não mexer em sua obra. Em uma nota logo no início, Fábio explica suas razões e faz um interessante comparativo com Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?. Porém, houve alteração no prefácio, que agora conta com as palavras de Fausto Fawcett, conhecido músico carioca e autor de Santa Clara Poltergeist (1991). Esse prefácio é quase uma obra à parte, tamanha a criatividade e estilo de Fawcett ao se expressar mesmo quando está descrevendo algo não ficcional. Acredito que suas palavras engrandeceram uma visualização de nosso cenário literário sobre o gênero, mas há “erros” de digitação em seu texto que precisam ser explicados, pois não se tratam de verdadeiros erros. Como já falei, Fawcett tem um estilo marcante até quando não escreve ficção e foi escolha do Fábio Fernandes manter a grafia original, preservando a identidade de escrita de seu amigo. Achei isso uma escolha muito corajosa, pois o prefácio é um dos primeiros contatos que o leitor tem com a obra após a capa, além, é claro, de criar certa expectativa sobre o que virá a seguir.
Por fim, a última coisa a comentar é sobre as capas. Ambas versões foram feitas pelo mesmo artista, Marcelo Dutra. Confesso que as duas me agradaram, mas senti um apelo visual maior na segunda.
A segunda edição, porém, acrescenta algo que poderíamos chamar de “o quarto paradoxo” em homenagem aos outros três descritos na introdução. Minha explicação é a seguinte: esse livro foi construído no futuro e projetado para representar a memória de um passado que se torna inacessível com a digitalização de seu formato. Brincadeiras à parte, confesso que gostei mais da leitura da segunda edição, pois uma obra com tantos rodapés é muito mais agradável (na minha opinião) no formato e-book, além das poéticas palavras de Fausto Fawcett.
site: https://cyberculturabr.wordpress.com/2018/02/04/os-dias-da-peste/