Flávia Menezes 06/09/2023
? CUJO: UMA ANALOGIA SOBRE A RAIVA QUE HABITA EM NÓS.
?Cujo? é um romance de terror psicológico que foi publicado primeiramente em 1981 pela Viking Press, e é mais uma obra prima do autor estadunidense (e Mestre do Terror) Stephen King.
Este foi o meu 38º livro lido do King, e apesar de ocupar o 12º lugar no ranking dos meus preferidos do mestre, eu confesso que já fazia tempo que eu não me surpreendia tanto (positivamente, é claro!) com um romance dele.
Foram várias as sensações que eu senti durante a leitura que me lembraram sentimentos parecidos que experimentei lendo outros romances do King, que ocupam o topo da minha lista.
Por exemplo, a forma como o King (brilhantemente) descreve os cenários com uma riqueza de detalhes que nos transporta e nos faz sentir como se estivéssemos lá, me recordou o que eu senti quando iniciei a leitura de ?O Iluminado? (meu eterno top 1!) e como cada descrição me transportava para a cena de um jeito tão mágico, a ponto de até conseguir ouvir uma trilha sonora (sinistra) tocar no exato momento em que a família Torrance se aproximava do Hotel Overlook.
Desta mesma forma, ler sobre os dramas pessoais de cada um dos personagens adultos, me fez recordar em como ?Duma Key?(meu top 4, que nem de perto é adorado por leitores fiéis bem mais aprofundados no mestre do que eu) também me despertou tamanha empatia pelos relatos que o protagonista, Edgar Freemantle, nos conta sobre as suas relações, e todas as suas alegrias e frustrações experimentadas em cada uma delas.
Mas a genialidade dessa obra está exatamente no cão da raça São Bernardo, chamado Cujo, e que dá nome a esse romance, porque nele King imprime e vai dando forma a uma das nossas emoções primárias: a raiva.
Inicialmente, eu cheguei a pensar que o Cujo era apenas um pano de fundo, ou um personagem que foi adicionado apenas para oferecer o elemento de terror que o romance necessitava. Mas ao final, ligando todos os pontos, eu percebo que é através dele que o autor pode fazer uma analogia de como é que nos parecemos quando a raiva se apodera de nós.
Através de um simpático e dócil cachorro, King vai dando forma a raiva, e vai revelando como essa emoção também está fortemente vinculada com o que está acontecendo no interior das personagens femininas.
Quando a história se inicia, temos um Cujo dócil, e que apesar do seu tamanho todo, não passa de um animal manso e amoroso que anseia por um afago de quem dele se aproxima.
Essa é a parte da história onde nos afeiçoamos a ele, e entendo como sua relação tanto com crianças quanto com adultos acontece de forma tão tranquila, e sem qualquer contrariedade. Porém, toda essa harmonia entre animais e humanos muda a partir do momento em que o Cujo é mordido por um morcego-vampiro, e contrai raiva.
Tanto externamente quanto internamente vamos vendo a transformação em Cujo: seus olhos adquirem um tom avermelhado, sua expressão começa a parecer assustadora, e seus latidos vão se transformando em uivos repletos de fúria assassina.
Esse exterior que vai se metamorfoseando em uma velocidade acelerada, é apenas a expressão do que acontece internamente, quando seu lado amoroso e leal vai dando lugar a essa sensação estranha de não ver mais os humanos como fonte de amor e carinho, mas como alvos para quem a sua sede de matança parece não ter mais fim.
A raiva é uma emoção básica que é compartilhada não apenas por nós humanos, mas também pelos animais. De todas as emoções, a raiva talvez seja a que tenha uma das piores reputações, ao lado apenas do ciúmes. E vistas como emoções negativas, acabam por ser incompreendidas e por isso mesmo, desencorajadas.
Porém, o que pouco se fala é que a raiva é uma emoção protetiva, cujo propósito não é destruir a tudo e a todos, mas sim proteger o que é importante (pessoas, valores, pertences...), e ainda nos impede de cair no conformismo.
O problema da raiva está apenas na sua frequência, pois quanto mais ameaçada uma pessoa se sente, mais intensamente ela irá sentir raiva. Isso acontece quando o ego é fraco, o que faz com que a pessoa se sinta ameaçada com mais regularidade.
Essa fragilidade do ego surge quando ignoramos ou desrespeitamos nossos valores internos, e isso faz com que mais facilmente nos sintamos ofendidos. E para resolver esse problema, precisamos trabalhar melhor os nossos valores internos para fortalecermos esse ego e não nos sentirmos assim tão fragilizados, não havendo mais tanta necessidade de usar a raiva como medida protetiva.
Apresento essas questões, porque é exatamente o que vemos nas duas personagens femininas principais dessa história: Donna Trenton e Charity Camber.
Donna é a expressão da ?raiva problemática?, que surge quando uma pessoa se sente facilmente ofendida. Porém, quando mergulhamos em sua mente, vemos uma mulher que viveu recentemente uma mudança de cidade, e que não encontra muita afinidade com as demais mulheres da vizinhança, nem possui uma atividade diária que a preencha.
Muitas dessas frustrações têm raiz nessa crise existencial e descoberta do processo de envelhecimento. Donna já está na casa dos quarenta anos, e suas mudanças externas começam a afetar a forma como vê a si mesma. Tudo isso somada a solidão e ao período em que marido e filho estão fora de casa, dá lugar ao vazio e ao ócio, fazendo com que ela se sinta dominada por sentimentos de protesto e insegurança (que também são parte da expressão da raiva) e acabe apresentando comportamentos destrutivos e egoístas.
Já Charity é aquela que possui uma expressão de raiva protetiva adequada, que aparece diante de uma ameaça real. E por bem saber gerir a sua expressão de raiva, Charity possui mais clareza de como se desvencilhar dessas situações de ameaça, além de ter mais assertividade na hora de planejar uma forma de mudar sua vida e não mais estar diante de constante intimidação.
Uma verdadeira aula sobre raiva e suas diversas expressões, não é mesmo?
Mas outra aula que eu apreciei nessa leitura, foi a forma como o King traz a linguagem organizacional, através da profissão publicitária de Vic Trenton, nos ensinando com bastante propriedade sobre comunicação assertiva, diagnóstico organizacional e persuasão. Eu confesso que eu amo quando o King incorpora esse lado da visão organizacional, que também podemos ver em ?Sob a Redoma?, onde ele nos fala sobre Liderança Eficaz, Trabalho em Equipe e Planejamento Estratégico de forma maestral!
?Cujo? é um livro que o mestre escreveu durante o apogeu do seu período de abuso de drogas e álcool, e ele nem sequer se lembrava de muita coisa do que foi escrito, conforme seu relato em seu livro autobiográfico ?Sobre a Escrita?. Porém, tenho que dizer que esse é um dos romances mais brilhantes do King, e com um final tão emocionante, que nos deixa pensado por longos e longos dias sobre como essa história nos impacta com tamanha intensidade.