Renata CCS 19/04/2018Um retrato intenso e quase insuportável do que é ser mãe..
“Seja uma pessoa completa. A maternidade é uma dádiva maravilhosa, mas não seja definida apenas pela maternidade. Seja uma pessoa completa.”
- Chimamanda Ngozi Adichie
A FILHA PERDIDA foi meu primeiro contato com a escritora Elena Ferrante, pseudônimo da aclamada romancista italiana que tem tido grande – e merecida – repercussão internacional.
A breve narrativa de 176 páginas é feita em primeira pessoa pela protagonista Leda, uma acadêmica de 47 anos que resolve tirar um período de férias na costa jônica, litoral sul da Itália, pouco depois de suas duas filhas, já adultas, irem morar com o pai em Toronto, no Canadá. O livro é, essencialmente, a narrativa das férias de Leda, mas com progressivas revelações sobre sua história de vida.
Com a mudança das filhas para outro país, Leda defronta-se com um sentimento totalmente diferente daquele que esperava ter. Ao invés de sentir-se sozinha por deixar de ser mãe em tempo integral, sente-se aliviada. Um alívio que chegava a ser constrangedor. Em suas próprias palavras, “(...) estava como alguém que conquista a própria existência e sente um monte de coisas ao mesmo tempo, entre elas uma ausência insuportável”. A casa, como num passe de mágica, passou a se manter sempre em ordem e, sem a preocupação com horários para colocar comida na mesa, passou a fazer as refeições em uma trattoria próxima. A leveza que o rumo de sua vida tomou refletia até em sua aparência. Olhando-se no espelho, constatou que parecia mais jovem.
Rejuvenescida e revigorada, tirou férias sozinha. Viajou contando apenas com sua própria companhia, rumo a um encontro consigo mesma. Alugou um pequeno apartamento no litoral e seguia, todos os dias, com seu carro, para a praia. Sua atenção se alternava entre a paisagem praiana, suas leituras e os banhistas, e em especial, a uma família ruidosa de napolitanos que frequenta o local. Seus olhares prendem-se mais em Nina, uma jovem mãe que sempre brinca dedicadamente com a filha pequena, Elena, parecendo indiferente ao restante da numerosa família. Nina faz Leda lembrar-se da própria juventude e de seu relacionamento com as duas filhas. Ela vai, aos poucos, relacionando aquela família às pessoas que fizeram parte de sua vida, de seu passado, e confessando ao leitor suas memórias mais desconcertantes e obscuras. A partir daí, a narrativa vai se alternando entre seu passado - por meio de fluxo de consciência de Leda - e a ilusória harmonia da vida de Nina. O conflito traça ao leitor um retrato fiel e, por vezes, nada glamouroso, do que é ser mãe.
A FILHA PERDIDA fala, principalmente, dos inconvenientes da maternidade, um lado que a sociedade não gosta de ver e até finge não existir. Enfim, é ainda um tema tabu nos dias de hoje. As personagens femininas mostram-se, ao mesmo tempo, apaixonadas e submissas à demanda de sua prole, realizadas por serem mães, mas anuladas em suas identidades. Todas têm ânsia de liberdade que, quando conquistada, parece-lhes indigna.
As mulheres escritas por Elena Ferrante são assustadoramente verossímeis em seus dramas e conflitos internos. São tão humanas e emanam tanta empatia que é impossível ao leitor condenar seus atos.
A FILHA PERDIDA é um romance magnífico! A partir de cenas simples e acontecimentos banais, Ferrante desenvolve magistralmente uma narrativa sublime: poesia e dramaticidade na medida correta. Sua linguagem traduz o que há de mais íntimo no ser humano. É profunda, pesada, arrasadora, viva.
O livro me balançou de uma forma que poucas obras foram capazes. Em um mundo que ainda idealiza a figura da mãe como um ser celestial, a obra abre caminho para discussões e quebra estereótipos de tantas representações idealizadas da maternidade.
Uma obra imperdível. Impossível manter-se indiferente depois dessa leitura.