mpettrus 02/11/2021
A Maternidade Obscura de Elena Ferrante
“A Filha Perdida” é o terceiro romance de Elena Ferrante, narrado em primeira pessoa pela personagem principal, a solitária Leda, uma mulher preste a completar quarenta e oito anos. Ela vive em Florença, é professora universitária, divorciada e com duas filhas adultas que vivem com o pai no Canadá.
Tudo acontece quando em um belo dia numa praia em Nápoles, a pequena Elena, uma criança de uns quatro anos, desaparece na praia. É Leda quem a encontra e a devolve à mãe, a estonteante Nina. Mais adiante, a narradora nos revela que embora tenha devolvido a filha pra mãe, não pode dizer o mesmo da boneca da criança, que enfiou na bolsa e levou embora. Aqui cabe ressaltar que Leda nos revela esse plot twist de maneira seca, como se fosse capaz apenas de constatar e não de interpretar esse seu ato desatino.
Esse acontecimento desencadeia uma série de rememorações e experiências-limítrofes, colocando à prova a sua sanidade e a sua própria vida. Após esse furto, Leda passa a brincar com a boneca, limpando seu interior, retirando areia, limo e uma minhoca de praia de seu ventre, e é nesse momento que Leda nos fala uma das frases mais emblemática de todo o romance:
“Uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”
Leda foi a protagonista do Mundo Ferrante que mais tive dificuldade para me afeiçoar, porque a personagem nos revela coisas insuportáveis enquanto filha, enquanto mãe e amiga de outra mulher. Um dos disparates mais escabrosos que li foi quando ela revelou que abandonou as filhas para viver uma paixão com um homem por quem se apaixonou e três anos depois voltou para a casa. Mas a relação com as duas filhas já estava estremecida e talvez, nunca mais essas mágoas fossem perdoadas.
Leda é uma personagem em busca de uma identidade, mas não qualquer identidade. Ela busca uma identidade feminina. Persegue saber, como mulher que é, qual é o papel que lhe cabe. Importante frisar que, embora Leda traga questionamentos sobre o papel feminino em seu discurso, não se trata de ideias fechadas, muito pelo contrário, a protagonista é a epítome de uma mulher – leia-se personagem feminina – em constante transformação. Ela é fruto de muitas transformações, ou seja, também de muitos fragmentos, em que tenta se compor por meio de sua narrativa, mas o tempo inteiro se mostra desconfigurada, fragmentada.
Leda é uma personagem em constante transformação, ‘sem silhueta’, como ela mesma diz, tão obscura quanto o feminino contemporâneo. Isso é algo que está presente desde o título, sobretudo no título original ‘La Figlia Oscura’, que significa ao pé da letra, ‘A Filha Obscura’. Se a maternidade e a capacidade de conceber outro ser dentro de si é algo exclusivo da mulher, no romance da Ferrante ela é investigada com uma profundidade infinita, assim como também é a relação mãe e filha, mulher e mulher.
Leda também traz características marcantes da literatura da Ferrante como mais uma personagem feminina que vive no limite do seu papel social e, por isso, se perde, foge ou desaparece. Na tetralogia Napolitana, por exemplo, a narradora Lenu, apelido de Elena Greco, decide escrever a história de sua melhor amiga, Lila, que desapareceu sem deixar rastro algum. Como resistência, Lenu escreve tudo o que sabe sobre ela, para impedir que se apague. Neste romance, a garotinha Elena se perde na praia lotada e, na confusão, acaba perdendo também a boneca, que, na verdade, é roubada por Leda, a narradora. É interessante notar que a personagem se desconfigura, perde suas margens, perde a identidade que vai buscar nas personagens com quem se vê confrontada e também naquelas que traz para a história por meio da memória.
Quando Leda se ver sozinha no mundo, vive uma experiência que ela denomina de ser alguém ‘’sem figura’, nos remetendo ao termo criado e usado por Ferrante a Tetralogia Napolitana: ‘desmarginada’. Lila, a amiga da narradora Lenu, diz no quarto romance da tetralogia, que sente que coisas e, principalmente, pessoas, perdem o contorno. Esse fenômeno me lembra a protagonista do romance de Clarice Lispector, ‘A Paixão Segundo G.H.’, que sofre esse processo de perda de si tal qual a personagem de Ferrante, a emblemática Lila, para definir um estado que a acomete: desmarginação.
É assim que eu visualizei Leda: sozinha no seu quarto desconhecido, desmarginada, desconfigurada, perdida de si. É um eu que se perdeu e que, portanto, precisa ser recomposto, reconfigurado. Cheio de memórias entrecortadas, reflexões intimistas, questionamentos de si mesmo, gangorra entre passado e presente, esse romance é o esfacelamento do diálogo da autora com o mundo feminino em seu grau mais alto de questionamento, sem contudo, apresentar urgência de entregar respostas.
Leda não se encerra na última página do livro, nem na morte que diz ter morrido, como um indivíduo sobre o qual, depois de morto, podemos dizer quem foi, o que fez, o que pretendia ter feito. O livro acaba, mas Leda continua me assombrando até mesmo depois do fim.