Luíza | ig: @odisseiadelivros 28/02/2020“Em seu corpo corriam as veias das paixões humanas; ele conhecia todos os graus de ciúmes, raiva e desespero” (p. 98)Como bichinho de estimação, eu só tive um hamster. E quase um peixe, que infelizmente desceu pela privada. Alguém já escreveu as impressões que um hamster teve sobre a vida? E as de um peixe? Podem resultar em narrativas interessantes nas mãos de um escritor habilidoso. E Virginia é, por excelência, uma escritora habilidosa.
Ok, tentarei – e provavelmente falharei miseravelmente – não elogiar (muito) a Virginia nesta resenha. O que eu quero dizer é que, a partir de um enredo aparentemente simplório, Virginia Woolf esculpiu um romance sublime, conseguindo abordar diversos temas, a partir da história, contada através de um discurso indireto livre, de um cão, Flush, um Cocker Spaniel.
Acompanhamos Flush desde a sua “infância”, seus anos de liberdade no vilarejo Three Mile Cross, com sua primeira dona, srta. Mitford, que resolve dá-lo a sua amiga, a então srta. Elizabeth Barrett. O florescer de seus hábitos instintivos é cessado nos anos em que vive em uma condição semelhante a um regime aberto, assim como a srta. Barret, acometida por uma misteriosa doença. Assim, a partir de Flush conhecemos a limitada e hierárquica sociedade londrina, tanto a dos cães quanto a dos humanos, já que a percepção de Flush é aguçada para ambas perspectivas. Por meio de Flush, uma biografia acerca da família Barret/Browning é tecida. É válido lembrar, neste ponto, que é, de certa forma, uma biografia verídica, feita a partir de muitas pesquisas em cartas e outros materiais, com uma pitada de poesia inserida pela autora, com todo o floreio caracteristicamente conhecido de sua escrita. Uma das partes mais tocantes, poetizada por Virginia, é o primeiro encontro da srta. Barret e Flush, em que, em um primeiro olhar, eles estabelecem suas afinidades e diferenças. É verdade que se parecem, mas é igualmente verdade que possuem suas dissonâncias – a incapacidade de falar de Flush é limitante em suas relações, deixando com que entre eles sempre haja “lacunas”.
Apesar disso, é Flush quem renuncia aos seus prazeres instintivos em prol de acompanhar sua aprisionada dona todos os dias, em Londres. É ele quem fica enciumado com os encontros com o sr. Browning. É ele quem faz com que conheçamos as periferias de Londres, a partir de seu sequestro, evidenciando as desigualdades que permeavam o aparente requinte da capital inglesa. E é ele quem acompanha a fuga de Elizabeth, agora sra. Browning, com seu marido, Robert, para a Itália. Todos esses eventos são contados a partir de seu ponto de vista, rente ao chão, em que a sinestesia, principalmente com a relevância do olfato, é muito marcada na narrativa. Os cheiros de Londres e Florença, assim como as próprias cidades, são diferentes, assim como os costumes que ele precisa aprender e até mesmo os cães. É com alívio que vemos Flush e Elizabeth viverem soltos. Para Flush, viver solto novamente. Para Elizabeth, descobrir a liberdade pela primeira vez.
Em meio a tudo isso, Virginia consegue fazer críticas, sutis, nem por isso menos poderosas, aos costumes e à sociedade. Não apenas a do século XVIII, como também a de sua época (e até hoje, talvez?). A percepção aguçada de Flush, conhecedor da sociedade canina e humana, o faz humanizado, mas não humano. Ele ainda é cão, pensa como cão, age como cão, embora tenha um pouco de humanidade nele, de conhecimento daqueles que o cercam, mesmo que o desconhecimento de algumas nuances gere desentendimentos ao longo da narrativa. E nos fazem rir, e nos emocionar, e chorar, sim, porque, além de tudo, Flush é um animal de estimação e nós nos apegamos a eles – embora eu não tenha apegado àquele quase primeiro peixe que tive.
Flush é um livro aparentemente irrelevante visto o magistral conjunto da obra de Virginia, mas recomendo a leitura especialmente para quem gosta de animais: você vai se apegar ao Flush.
[Dica: a edição da Editora Autêntica, com a tradução maravilhosa de Tomaz Tadeu, ilustrações de Katyuli Lloyd e posfácio de Maria Esther Maciel é belíssima, com ilustrações coloridas, notas traduzidas da autora e notas do tradutor]