Brunífero 02/03/2022
Guerra suja é um eufemismo
Quando falamos de conflitos em um contexto acadêmico, não tratamos os lados como bem ou mal. Para tudo, há pretexto; jamais justificativa. E nada nunca é tão simples quanto parece.
Podem parecer lições óbvias, mas muitas vezes, no calor do momento (e ás vezes por falta de uma boa intepretação de texto), é comum ver esses posicionamentos sendo jogados às favas em favor de maniqueísmo puro e simples. Por isso a arte é tão importante: é preciso entender e absorver os ensinamentos de forma mais profunda, visceral ou mesmo emocional. Essa é a lição que carrego desde que li essa graphic novel espetacular.
Sendero Luminoso, antes de tudo, era uma guerrilha rural de inspirações maoístas. Surgida tardiamente em meio às reações armadas contra as ditaduras militares que tanto marcaram a América Latina dos anos 50 ao começo dos 80, era liderada por Abimael Gúzman, ex-professor universitário de filosofia que se tornaria líder militar conhecido em 1980, quando a guerrilha surge no coração do Peru. O surgimento da guerrilha em um período de maior democratização assustou a esquerda institucional e o governo, que engajou em um combate duro e extremamente desonesto. A ocupação do interior do país serviu de bode expiatório para verdadeiros abusos de poder, como estupros, extorsões, saques, massacres de civis, tomadas de terras para entrega a latifundiários, dentre outras situações jogadas para debaixo do tapete pelo governo e pela memória nacional do Peru numa situação que faz a Comissão Nacional da Verdade parecer um carrasco sem dó nem piedade.
Porém, a despeito dos brutais métodos de repressão do Estado, o Sendero Luminoso não arrefecia de jeito nenhum. Todo o cenário político da década de 80 e o começo de 90 foi protagonizada pelos atos do Sendero, que em sua etapa final chegou até a bombardear cidades grandes como Lima (!!), e para desespero dos centristas, o repúdio ao Sendero não era unanimidade dentro da nação peruana, pelo contrário; seu apoio, especialmente nas áreas rurais, não era nada desprezível, ainda que o Sendero e seus soldados desconhecessem manuais de ética; durante toda a leitura, a guerrilha se assemelha menos com os Sovietes ou mesmo com Sierra Maestra e mais com os modernos grupos terroristas que começaram a surgir praticamente ao mesmo tempo. Não apenas pelos métodos violentos de conquista, mas pelo fanatismo de seus seguidores. Não há uma filosofia mais profunda que explique a realidade do país ou mesmo da região, nem sequer um comando organizado que regule o comportamento dos combatentes - minto, há sim: o personalismo de Abimael, que na guerrilha passou a atender pelo nome de Camarada Gonzalo. E para Gonzalo, contra o estado peruano e sua brutalidade social valia tudo. Até empregar os mesmos métodos de seus inimigos. Mesmo assim, a guerrilha era grande e arrebanhava setores importantes do campesinato. Como?
A resposta não é tão simples quanto mera propaganda ou um elitista "porque o povo é burro". Quando o roteiro de Alfredo Villar começa com o primeiro ato conhecido do Sendero - a saber, a queima de urnas eleitoras numa vila do interior -, pressupõe-se que o leitor moderno ache tudo muito hostil. Os desenhos grossos em preto e branco de Luis Russell e Jesús Cossio corroboram as ameaças, os rostos grossos e pouco simpáticos e o pesado e sectário linguajar revolucionário. Porém, conforme o enredo avança e testemunhamos a complexidade da situação, eu fui tomado por um sentimento desolador que ultrapassa o que uma linguagem mais pobre chamaria de cinismo. Não saberia nomear o que senti testemunhando o puro horror: uma sensação de torpor e de tirar o chão. Por pior que o Sendero Luminoso pudesse ser, os horrores do estado peruano conseguem te fazer sentir coisas piores. É, acima de tudo, um atestado da violência tipicamente latino-americana, que se torna ainda mais chocante quando se considera que os crimes do governo foram cometidos numa autointitulada "democracia", com todos os seus arranjos formais e processos informais. É uma pequena mostra da verdadeira alma desta região profundamente desigual, violenta e violentada. E sem nenhum dos floreios que o mundo dito desenvolvido se acostumou para mascarar seus podres. E quando se tem um atestado tão grande de falência do status quo, só restam duas opções: a apatia ou a radicalização. A encruzilhada que o Peru se encontrou no começo dos anos 80.
Mesmo depois de seu fim, com a captura de Abimael nos anos 90, a sombra do Sendero Luminoso continua a pairar sobre o Peru. Para se ter uma ideia, quando o azarão professor rural Pedro Castillo foi para o segundo turno com Keiko Fujimori nas eleições de 2021, esta, junto de seus correligionários, espalharam o boato de que os votos que Castillo recebera do interior foram coagidos por células do Sendero Luminoso, que teria retornado com a injeção de ânimo que a esquerda radical recebera nas eleições! Ignore o fato que o Sendero Luminoso era totalmente descrente com a política formal. O fato é que a guerrilha hoje é o grande saco de pancadas da direita local - os fujimoristas ainda argumentam que a sua extinção, sob o governo do ditador Alberto Fujimori, foi O marco de seu governo. E de certa forma, é verdade. Só é preciso apagar o que foi necessário para que isso fosse possível.
Se tem uma coisa que historiadores se acostumaram a ver no debate público, com certeza é o falacioso maniqueísmo do discurso político, sempre maquiando e empobrecendo as camadas da realidade. Porém, não há teoria da ferradura aqui: o poder estabelecido sempre terá as distorções mais podres do que a esquerda mais abjeta pode conceber. O horror que as classes dominantes peruanas tinham aos combatentes maoístas se deve menos a uma oposição ideológica ou sequer a autopreservação, e sim ao choque em ver um grupo de outsiders (pretender) tratá-los da mesma forma que estes sempre trataram os camponeses e os indígenas durante toda a sua existência. Por isso, o horror da guerra e a assepsia do esquecimento. A nossa sorte é que, ao contrário do que o dito popular diz, a história não é escrita pelos vencedores, e sim pelos sobreviventes.
*A edição nacional é a da Veneta, que conserva o prefácio original da obra e acrescenta uma introdução do editor Rogério de Campos, que contextualiza a história recente da região. Além disso, o final de cada capítulo é acompanhado de um paratexto dos autores que aprofundam a discussão das ideologias e métodos do Sendero Luminoso