Andreia Santana 06/02/2021
Dos cansaços, bournouts e jornadas triplas
Uma mulher de 44 anos, editora de uma revista de celebridades, mãe de gêmeos, casada, que sofre um infarto sem perceber. Esse é o mote do romance Quando eu partí, da escritora Gayle Forman.
Narrando a história da protagonista Marybeth Klein, a autora traça um fiel panorama da vida de boa parte das mulheres da atualidade e suas triplas jornadas que envolvem empregos desgastantes, tarefas domésticas exaustivas, cuidados com as crianças – para as que são mães – ou com os entes mais idosos da família; e, no caso daquelas que são casadas com homens cis, hetero e padrão, a falta de apoio dos maridos omissos e machistas, que ainda acreditam que os cuidados da casa e com as crias são prerrogativas exclusivas de mulheres.
O romance de Gayle Forman é bem pé no chão. A autora, como ela mesma afirma nos agradecimentos e dá para perceber na leitura, fez muita pesquisa sobre o que os médicos chamam de ‘infarto branco’, esse que é quase imperceptível e que tem sintomas que são, muitas vezes, confundidos com mal-estar gástrico ou mesmo com crises de estresse.
Aspectos nada glamourosos da maternidade são abordados neste livro que narra a jornada de uma mulher doente em busca de se curar e se tornar uma pessoa melhor para si mesma, os filhos e as demais pessoas com quem ela se relaciona. A culpa eterna que aquelas que se tornam mães carregam e a apreensão constante de que cada decisão em relação às crianças está sob constante julgamento, são abordadas de maneira crítica, delicada e solidária.
As mulheres sempre tiveram a fama de cuidar da própria saúde melhor que os homens, que por conta dos tabus, ainda relutam, por exemplo, em fazer exames invasivos, como o de próstata. Mas elas, cada vez mais, sufocam em incontáveis obrigações e o resultado é que muitas vezes se preocupam com a saúde e o bem estar da família inteira e negligenciam a própria. Nesse caso, a narrativa hiperrealista de Gayle Forman serve de alerta para todas nós, que passamos por cima de nossos cansaços, flertamos com a Síndrome de Bournout e mantemos um ritmo humanamente impossível de sustentar por longos períodos.
A autora, nesse caso, não deixa também de abordar o quanto as mulheres, até por já não terem mais paciência ou a ilusão de esperar que mais alguém carregue o piano junto com elas, em parceria e não apenas como ajudantes, de tanto administrarem a carga mental – mesmo quando alguém ajuda são elas que têm de determinar quais são as tarefas e o papel de cada um – se tornam obsessivas, perfeccionistas ao extremo e, de certa forma, desenvolvem aquele complexo de mártir e super-heroína. ‘Pode deixar que eu faço’, ‘Eu me viro’, ‘Não preciso de ajuda, estou bem’, quando na verdade elas não estão nada bem.
A maior parte do livro transcorre em tom agridoce e é focado em Marybeth e na sua trajetória. Após infartar, ela começa a rever a própria vida e a narrativa mescla flashbacks da juventude da protagonista com as ocorrências mais recentes que a levaram ao ataque cardíaco e a tudo o que ela faz depois do infarto.
Óbvio que a personagem de Gayle Forman é uma norte-americana, que vive em um loft em um endereço chique de Nova York com a família e que tem uma conta poupança de onde pode sacar 25 mil dólares para financiar sua fuga autocurativa. Na vida real, milhares de mulheres que sofrem as mesmas pressões que a protagonista de Quando eu partí não podem se dar a esse luxo.
No entanto, apesar da disparidade de cultura, etnia, nacionalidade e classe social entre a personagem deste livro e muitas das leitoras de Forman, o que a autora aborda são os sentimentos universais. As queixas de Marybeth Klein são mais frequentes na vida da maioria das mulheres do planeta do que se imagina.
Pelos olhos de Marybeth, vemos o comportamento de outras pessoas, como o marido, os gêmeos, os outros pais e mães da escolinha, os pais adotivos da protagonista e sua busca pela mãe biológica, que ela nunca conheceu. Esses personagens que gravitam em torno da protagonista também são muito reais, com atitudes típicas em diversas pessoas que conhecemos na vida fora dos livros. A autora é atenta ao seu tempo e é sensível às contradições humanas.
Há também subtramas interessantes, como a do novo cardiologista que a protagonista contrata para cuidar de seu combalido coração, no sentido literal e figurado. Não falta, ainda, um certo alívio cômico nos dois vizinhos universitários e vinte anos mais jovens que se transformam em seus melhores amigos. E, para coroar a história, paira sobre Marybeth a sombra daquela amiga íntima que com o tempo se distanciou.
Quando eu partí é um romance adulto no sentido de maturidade, que aborda questões que são mais caras às mulheres de meia idade, mas que também pode agradar às mais jovens. Elas certamente poderão identificar aspectos das próprias mães em Marybeth e assim, quem sabe, aprenderem a lidar melhor com elas e consigo mesmas, enquanto filhas adolescentes ou jovens adultas, de mulheres sobrecarregadas e à beira de um colapso.
Recomendo a leitura também para os homens, que como Jason, o marido de Marybeth, ainda estão em lento processo de desconstrução dos padrões machistas que azedam as relações e perpetuam tantas injustiças e opressões no mundo. Gayle Forman não transforma esse marido em um opressor sem sentimentos, mas aponta de forma precisa onde estão os erros da educação que os meninos receberam no passado e ainda recebem e que os faz reproduzir padrões que também os aprisionam em modelos de masculinidade tóxica.
O livro não é panfletário, mas é consciente e bastante conectado ao espírito dos tempos atuais. A história é bem amarrada, tem um ritmo que prende a atenção – as cartas que Marybeth escreve para os filhos em seu autoexílio e a amizade que ela desenvolve com Janine, a chefe de um serviço que ajuda crianças adotadas a encontrarem suas origens, são os momentos mais ternos e delicados de todo o romance. Forman faz também aquelas concessões bonitinhas de citar elementos da cultura pop que provocam uma nostalgia gostosa.
Particularmente, me lembrou uma velha amizade, que repetia exaustivamente para uma versão vinte anos mais jovem de mim: “Para ser uma mãe feliz é preciso que você seja, primeiro, uma mulher feliz”.
O exemplar que eu li:
Nunca tinha lido nada de Gayle Forman, mas sabia que ela era a autora de Se eu ficar, que foi adaptado para um filme dramático de 2014, protagonizado por Chloë Grace Moretz. Marquei o filme para assistir em um serviço de streaming recentemente (Tem no Telecine Play e no Amazon Prime). Ando esgotada, como boa parte das pessoas nessa pandemia e minha irmã me enviou uma reportagem, dia desses, falando sobre a Síndrome de Bournout. Por coincidência, se é que coincidências existem, fui futucar o Skeelo para escolher um e-book, uma leitura para antes de dormir, quando a adrenalina do trabalho no fechamento de um jornal diário, me deixa ligada na tomada por mais horas do que o recomendado para uma noite de sono saudável. Escolhi Quando eu partí por acaso, sem nenhuma referência prévia fora o nome da autora e, logo nas primeiras linhas, percebi que o universo andava me mandando recados para cuidar do coração…
Ficha Técnica:
Quando eu partí
Autora: Gayle Forman
Tradução: Ryta Vinagre
Editora: Record
308 páginas
Ano de lançamento: 2016
*R$ 17,90 (capa comum)
*Pesquisa na Amazon, em 06/02/2021
**Disponível para assinantes do serviço Amazon Kindle Unlimited e também no catálogo do serviço de e-books Skeelo.
site: https://mardehistorias.wordpress.com/