Layla 29/11/2017"É disso que a vida é feita. Fazer os outros quererem ser você."Confiança. Nós falamos dela e vivemos e abordamos tanto esse sentimento em nosso cotidiano que não é sempre que paramos para pensar sobre ela. Ela pode acontecer rapidamente - com alguém que você acabara de conhecer e já se sente abraçado e aceito por aquela pessoa; ela pode demorar e se construir aos poucos, com pequenas palavras e toques e conversas até que se torne algo grande, algo forte; ela pode durar por anos e anos e ser destruída, completamente fragmentada e sem volta, e pode ser demolida, mas com chance de ser novamente montada, construída, erguida.
"Ela era toda estrela nos olhos, vendo o potencial das pessoas. Todo. A. Porra. Do. Tempo. Tão estúpida. Ela não tinha ideia de como as pessoas eram piranhas. Ela não tinha ideia de quem eu era."
Confiança pra você pode ser várias coisas. Pode ser o ato de acreditar em alguém ou algo, de ter intimidade ou familiaridade em suas relações e ações, pode ser a sensação de crédito em algum conceito ou teoria. Para mim, a confiança surge quando eu passo a conhecer a pessoa ou aquilo em que estou agindo e não é algo que cedo com facilidade, embora, uma vez dada, minha confiança é total e pode ser até eterna, se não for estremecida. Muitos de vocês provavelmente são do mesmo jeitinho.
Contudo, o conhecer da questão é irônico e sempre me levantou muitos questionamentos. Conhecer é ter consciência, é ter, como na confiança, familiaridade com alguma coisa. É pertencer, não no sentido de possuir, mas de fazer parte de algum lugar, de alguém. No dicionário, é assimilar através dos sentidos ou da mente, é saber por sentir, é experimentar.
"Eu te vejo conquistando coisas que você não merece, vivendo a vida. É uma grande merda. Fico ressentida porque eu as mereço mais do que você. Eu poderia ser uma melhor você."
Eu posso conhecer alguém sem confiar na pessoa, mas não posso confiar na pessoa sem conhecê-la. E é aí que reside a ironia: quem é que conhecemos de verdade? Vocês podem me chamar de cínica - o que não é lá grande mentira -, mas há alguém que vocês conhecem completamente? Vocês conhecem seus amigos, seus companheiros, seus irmãos? Vocês podem dizer, com ampla certeza, que conhecem seus pais, as pessoas que fizeram vocês, as metades que compõem quem vocês são?
Possivelmente não. E como vocês estão se sentindo ao pensar nisso? Qual é a sensação? Eu me sinto amarga, com um nó no estômago; tenho de umedecer os lábios constantemente porque eles estão secos. É asfixiante. É solitário. É, em outras palavras, Bad Mommy.
"Era uma percepção áspera que a vida que você estava vivendo não era bonita, mas dissimulada e secreta. E que a pessoa que você mais amava estava te dando golpes que você não poderia sentir ainda."
Neste livro visceral de Tarryn Fisher, acompanhamos uma relação obsessiva e todo o seu desenrolar - Fig, a obsessiva, tenta ser e ter a vida de Jolene, sua vizinha, e até mesmo conquistar o marido dela. Não darei muitos detalhes pra não estragar todo o impacto que a leitura pode ter, contudo, o que achei mais rico nessa leitura não fora o plot incrível, o enredo de arrepiar, as emoções excruciantes - fora a incursão profunda em cada personagem.
Conhecemos - e sim, conhecemos de verdade e completamente - a Fig, a Jolene, e o Darius, exploramos a confiança dos elos de suas relações, suas concepções e mentiras, e principalmente suas verdades, verdades essas mascaradas tão bem que nem àqueles que os conhecem e nem àqueles que confiam neles sabem.
Não posso lembrar dessa história sem passar mal. Eu me vi jogada de um lado a outro, vendo Fig imitar Jolene e tentar tão profundamente ser como ela, roubar dela a filha e o marido, indo da empatia enquanto tentava entendê-la de modo mais amplo e para completo nojo quando conseguia. Vi-me cheia de asco por Darius - ele foi como... como estar com fome e ver uma maçã, linda e vermelha, sentir a boca salivar e dar aquela bela mordida na fruta para descobrir que, por mais linda que ela fosse e parecesse ser, ela estava toda estragada por dentro. E pior do que isso, Tarryn me fez sofrer um pouquinho mais por ver um colega de profissão - um psicólogo, alguém que deveria ajudar aos outros e não priorizar suas próprias vontades e anseios naqueles que precisam da sua ajuda - ser tão monstruoso, tão humano e ainda assim, tão desumano.
"Não são as mulheres que me deixam de pau duro; é a minha habilidade de controlar as emoções delas."
Quis abraçar e proteger Jolene, quando lia e assistia as cobras em forma de pessoas que lhe eram próximas, que lhe eram queridas, fazendo-a sofrer.
Bad Mommy é o raio-x das maçãs lindas mas podres que somos nós. É horrível ver a humanidade, ver a nós mesmos, narrados de maneira tão crua, tão arrebatadora, tão agressivamente repulsiva e verdadeira. É horrível. Entretanto, é fascinante pelos mesmos motivos.
"Eu não sabia quem eu era. É como se eu estivesse escavando pilhas de cabelos soltos e dentes quebrados. Eu estava principalmente enojada, mas também havia aquele fascínio sombrio de que eu poderia ser tão feia e ainda assim existir."
Vocês já saíram de casa num clima frio, com blusa de lã, cachecol, jaqueta, e horas depois se encontraram embaixo de um sol escaldante? Provavelmente sim, com nosso clima tropical e invernos confusos. Vocês lembram-se da sensação? Vocês se lembram do calor, da blusa de lã abafando e pinicando, do suor se espalhando como uma nova pele, da claustrofobia leve de se estar sob tantos tecidos? É horrível, desconfortável, e você não vê a hora de tirar todas aquelas blusas, apesar de que, horas antes, vocês não podiam se ver sem elas.
Estão familiarizados com esse sentimento?
Ler Bad Mommy fora exatamente assim. E hoje, quase um ano depois de ter lido, ainda me sinto agasalhada sob um sol de trinta graus. Porque saber que não conhecemos completamente as pessoas e o quanto elas podem nos degradar, nos ferir, pode ser uma blusa fina de manga comprida com vinte e três graus lá fora; mas sentir na pele e coração o que Tarryn - o que Jolene - passou, nos apropriar de todas aquelas sensações e relembrá-las, é como usar um casaco de lã num dia quente.
BM foi como usar um casaco de lã num dia quente.
Um livro profundo, insano, com um toque obscuro que existe em todos nós e feito de vísceras, Bad Mommy é um livro completamente Tarryn Fisher, é um livro que mostra que os humanos não são bem o que aparentam ser, é um livro pesado e impossível de se largar - e o melhor de tudo: é um livro que será publicado em breve pela Faro aqui no Brasil!
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