Eros e Civilização

Eros e Civilização Herbert Marcuse




Resenhas - Eros e civilização


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Allyson 09/06/2020

Para quem nunca leu Freud, esse pode ser um Norte para os seus ensaios. A obra tem como ponto de partida justamente na repressão da civilização sobre o indivíduo, Eros/Thanatos e o complexo de Édipo. Os alicerces do primeiro repressor e uma história que bem parece uma mitologia grega. Acredito que Aldous Huxley se baseou nas teorias freudianas para escrever "Admirável mundo novo'' A sociedade evoluída do autor flerta com a teoria da sociedade futura descrita no livro. Ademais, o autor distrincha diversos ensaios sobre os mais diversos temas que Freud tratou em sua obra e refuta teorias críticas sobre o mesmo. Em suma, uma obra digna de leitura repetida, trazendo os elementos necessários para a assimilação rápida e profunda da psicanálise humana
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Chris 04/08/2010

Axiologia na estética erótica de Herbert Marcuse
O ponto de partida desse trabalho, de onde desenvolverei as idéias é afirmação: A civilização se fez e se mantém a custa da repressão do o prazer e da própria felicidade, que são subjugadas pela razão em favor do progresso. De modo que tentarei desmistificar a imagem da “razão libertadora” e argumentar que na sua própria concepção a razão é justamente o fator repressor e opressor. Repressão essa criou os alicerces dos valores da nossa cultura, que valoriza o sofrimento e o labor, desde que sejam favoráveis para uma evolução que nós nem sabemos a que se destina. Para que seja possível um estudo acerca dos valores criados pela cultura, primeiramente faz-se necessário caracterizar esses valores e localizá-los. Começaremos pela religião.
Religião

Começaremos destrinchando a origem desses valores, hoje superlativizados pelo modo de produção capitalista, pela moral cristã. O próprio advento da cultura cristã nada mais é que uma visão totalmente distorcida de sua origem. A moral que ergueu a civilização a partir da idade média, de sacrifício e amor ao trabalho, não está totalmente em conformidade com os textos originais de tal instituição. O escritor marxista francês, Paul Lafargue em sua obra Direito a Preguiça aponta essa inconformidade

“Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara.” (Lafargue, 1999, 3-4)

Ao que Lafargue trata como maldição, pode-se localizar facilmente no livro sagrado do cristianismo. Nele, deus deixa bem claro que o trabalho, dentre outras coisas, é obra de seu castigo
“E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela: maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão (Gên 3, 16-19).”

Percebe-se então que o labor, que é encarado como uma boa coisa pela nossa cultura é na verdade considerado por deus como algo digno de ser um dos seus maiores castigos. Deus esse que possui um trabalho que é caracterizado por Lafargue como sendo um ótimo exemplo de como o trabalho deveria ser; o onipotente criou tudo em seis dias e descansou o resto da eternidade. Então, ao percebemos a proximidade e o gosto de deus pela preguiça, somos tentados a questionar porque os seus discípulos criaram essa imagem tão laboral do deus preguiçoso. Encontraremos a resposta a essa questão no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, do sociólogo alemão Max Weber. Nele descobrimos que a origem desse pensamento está não no cristianismo geral, e sim no protestantismo e mais especificamente no calvinismo que deu origem ao puritanismo. Essa escola de pensamento religioso teve inicio da Inglaterra depois da reforma luterana e teve grande importância no desenvolvimento da revolução industrial. Além disso, foram os puritanos que fundaram a maior potência da atualidade, os Estados Unidos da América. Ou seja, o pensamento em questão está na base do modo de produção atual. Todavia, como já foi apontada anteriormente, essa visão dos puritanos calvinistas é um pensamento particular e diferente de outras religiões também baseadas na bíblia. Temos como exemplo, a religião católica que possui ordens mendicantes. Portanto, percebo que esse pensamento não é a verdadeira causa do problema, e sim mais um efeito. Que mesmo sendo efeito é causa de muitas outras coisas, como a própria amplificação da razão repressora. Irei aqui tratar da verdadeira origem do problema, que se deu muito antes do advento do cristianismo. O começo da humanidade é também o começo da repressão
Origem da civilização repressiva

Para Marcuse, a transformação do homem animal em ser humano, acarretou não só mudanças na sua natureza, bem como também ocasionou uma transvaloração nos princípios que governam os anseios. Essa mudança é colocada como sendo do princípio de prazer em princípio de realidade. O princípio de prazer está ligado unicamente ao prazer momentâneo, desse modo se tornando incompatível com o meio humano e natural. Em outras palavras, pode-se dizer que uma vida governada pelo princípio de prazer é incompatível com o próprio prazer, de modo que a vida em si necessita de coisas externas ao homem, como por exemplo, a comida. Bem como é necessária também à manutenção da própria vida; segurança e procriação. Isso quer dizer que essa mudança de estágio tão criticada por Freud, foi na verdade algo que ocorreu em beneficio do homem. Se o homem vivesse só do produto da terra de suas redondezas, sem se preocupar em trabalhar para mantê-lo e assegurá-lo, iria por acabar fazendo mais esforço para suprir suas necessidades. Se não tivesse criado agricultura nem a pecuária, o esforço seria imensamente maior que caçar ou colher somente quando tivesse fome. Não podemos esquecer que tanto os grupos de animais quanto a vegetação estão passiveis a diversas mutações, tornando muitas vezes, se não impossível, muito complicada e desprazerosa a vivencia em certos lugares do mundo. Essa tese é à base da obra, a luta entre o instinto de vida (Eros), que é a pulsão criadora, livre para desenvolver as potencialidades humanas em busca da gratificação que é na verdade o próprio prazer. E o instinto de morte (Thanatos), que é a pulsão repressiva que tem como objetivo a manutenção da vida, a ausência de sofrimento, o retorno ao estado inorgânico. Ao que me parece, essa é a visão de Marcuse sobre a mudança do domínio do prazer para o domínio da realidade.
E é sob esse domínio que nasce a razão. Contudo, faz-se necessário salientar que essa razão ainda não pode estar localizada no termo “razão repressora”. Essa razão no inicio do seu desenvolvimento é a que torna o sujeito pensante, que faz a distinção dentre outras, entre falso e verdadeiro, bom e mau, útil e inútil. A pesar de que toda razão é repressora, essa é uma repressão necessária para a vida humana e me parece que nesse estágio ainda seria possível uma conciliação entre razão e prazer.
“Certo, toda e qualquer forma de sociedade, de civilização, tem de impor um tempo de trabalho para a satisfação das necessidades e superfluidades da vida. Mas nem todas as espécies e modos de trabalho são essencialmente irreconciliáveis com o princípio de prazer.” (Marcuse, 1975, 59)

Tudo indica que para o pensador alemão, o grande trauma ocorre no momento em que o principio de realidade passa a ser continuamente restabelecido, transformando-se em princípio de desempenho, ocasionando a mais-repressão •. Quer dizer, a humanidade acabou por extrapolar da razão que a principio servia o homem, e, sobretudo, garantia o prazer. Não creio que seja um exagero dizer que a razão servia ao principio de prazer. Imagino que nesse momento foi feita uma escolha inconsciente relembrando nossos distantes antepassados: Os macacos (pelo fato, deste trabalho não se tratar de um estudo antropológico, tampouco biológico, irei abordar esse tema mesmo que de forma bastante sucinta, pois acredito que seja deveras interessante). Dentre diversos tipos de macacos, dois possuem o DNA quase idênticos ao do homo sapiens, os chimpanzés e os bonobos. Apesar de ambos os animais serem chimpanzés, tratarei aqui do bonobo (Pan paniscus), conhecido também como chimpanzé anão, somente como bonobo, e chamarei simplesmente de chimpanzé o chimpanzé-comun (Pan troglodytes). Embora pertençam à mesma família, a diferença de comportamento entre as duas espécies é enorme. Por um lado os chimpanzés possuem uma sociedade centrada no macho alfa, as fêmeas são tratadas como propriedades e possuem um comportamento agressivo com os seus iguais. São os únicos animais não inteligentes a matar por poder, não é raro que outros machos se unam no intuito de matar o macho dominante. Por outro, os bonobos são solidários, possuem uma sociedade na qual a fêmea tem extrema importância. Não existe imposição nem repressão por nenhuma parte do bando, ao invés de usarem violência, a arma que eles possuem para enfrentar os conflitos é o sexo. Apesar de que as duas espécies possuem praticamente o mesmo nível de inteligência, é bastante clara a diferença da forma de vida. Contudo, deve-se lembrar da importância do meio natural na evolução das duas raças. Acredito que o grande fato diferencial, é que os bonobos vivem em regiões com fartura de alimento e água e longe de grandes predadores. Portanto, coloco a escolha humana como sendo no momento do nascimento do principio de realidade, quando ele pôde fazer com que houvesse certa facilidade para suprir suas necessidades. É especificamente nesse momento, que o homem possui a liberdade de escolher se ele quer se desenvolver como bonobo, ou como chimpanzé. O resultado da escolha é bastante claro.
Desenvolvimento da civilização repressiva
Desde então a civilização vem se desenvolvendo de forma extraordinária. Em compensação perdeu-se a liberdade e aumentou-se a exploração também de forma extraordinária. Um preço bastante alto a ser pago. Para Marcuse, o começo disso tudo ocorreu primeiramente na horda primordial:
“Num dado momento da vida do gênero homem, a vida grupal foi organizada por dominação. E o homem que conseguiu dominar os outros era o pai, quer dizer, o homem que possuía as mulheres desejadas e que, com elas gerara e conservara vivos os filhos e filhas. O pai monopolizou para si próprio a mulher (o prazer supremo) e subjugou os outros membros da horda ao seu poder. Conseguiu estabelecer seu o seu domínio porque lograra excluir os outros membros do prazer supremo? Em todo caso, para o grupo como um todo, a monopolização do prazer significou uma distribuição desigual de sofrimento” (Marcuse, 1975, 69)
Assim como alguns animais (vide chimpanzés), as primeiras sociedades humanas também foram desenvolvidas tendo como centro o “macho alfa”, que nesse caso está caracterizado como sendo o “pai’, que podemos traduzir como sendo aquele que por um lado era responsável pela segurança e ordem do grupo, e por outro sendo o déspota, repressor que monopolizou o prazer dos outros em virtude unicamente do prolongamento do seu.
Entretanto, o autor assinala que a civilização só começa realmente no momento em que a repressão é auto-imposta:
“... esse ódio culmina na rebelião dos filhos exilados, o assassinato e devoração coletiva do pai, e o estabelecimento do clã dos irmãos, que por sua vez, deifica o pai assassinado e introduz aqueles tabus e restrições que, segundo Freud, geraram a moralidade social.” (Marcuse, 1975, 70-71)
Em outro parágrafo, Marcuse vai explicitar de outra o forma o motivo pelo qual os filhos auto introjetaram a moralidade do pai:
“Mas os filhos querem a mesma coisa que o pai; querem a duradoura satisfação de suas necessidades. Só podem atingir esse objetivo repetindo, numa nova forma, a ordem de dominação que controlava o prazer e por isso preservava o grupo.” (Marcuse, 1975, 72)
Em outras palavras, pode-se dizer que existe uma dupla vontade dos filhos em imitarem o comportamento do pai. Por um lado, o desejo egoísta de ter um prazer duradouro que precisa ser à custa de um terceiro. Por outro, a constatação de que a repressão dos instintos nos outros manteria o status quo. Contudo, também é imprescindível apontar a responsabilidade da “culpa” gerada pela ambivalência das emoções relativas ao pai. Mesmo com o desejo que de fato se realizou de matá-lo, existia um sentimento de afeição, que contribuiu também para a admiração e vontade de substituição do gestor principal. Foi partindo desse ponto que a razão repressiva foi se desenvolvendo, conquistando espaço, criando valores e heróis culturais relativos ao sofrimento, a labuta e, sobretudo à negação da própria vida.
Mesmo parecendo tão distantes, a razão cientifica parte do mesmo princípio da religião dominante (cristã). Salientaremos aqui, mais precisamente a negação do corpo, aqui entende-se por corpo, os instintos e paixões criados pelo mesmo. Não é de se estranhar essa negação dentro da moral cristã, que se desenvolveu criando a esperança numa vida posterior e não carnal. O problema realmente vem do que devia combater esses preceitos. Infelizmente percebemos que a razão, ao invés de se desenvolver a favor do homem, cresce para um destino não tão diferente da religião, um destino não humano. E mesmo as ciências que estudam o corpo, o vêm somente como objeto e não como sujeito. Por um lado temos uma religião metafísica que prega basicamente a abdicação da “carne”, por outro, têm-se a ciência e a sua racionalidade que também não permite intervenções das paixões.
“A atitude científica já deixou há muito de ser a de antagonista militante da religião, que com igual eficiência rejeitou os seus elementos explosivos e freqüentemente acostumou o homem a uma boa consciência em face do sofrimento e da culpa. Nos domínios da cultura, as funções da ciência e da religião tendem para a complementaridade; através de seus presentes usos, ambas negam as esperanças que outrora suscitaram e ensinam os homens a apreciarem os fatos num mundo de alienação. Neste sentido, a religião deixou de ser uma ilusão e sua promoção acadêmica está em concordância com a predominante tendência positivista. Na medida em que a religião ainda preserva as aspirações obstinadas à paz e à felicidade, as suas ilusões ainda possuem um mais elevado valor de verdade do que a ciência, que trabalha para a eliminação daquelas. O conteúdo reprimido e transfigurado da religião não pode ser libertado mediante a sua submissão à atitude científica.” (Marcuse, 1975,77-78)

Portanto, é assim que se desenvolve a civilização repressora. Que tem como principal fundamento a sublimação , esta, que tirou do homem a principio o prazer imediato, e está o colocando cada vez mais longe das suas mãos, originando a dessexualização do corpo. É necessário entender a subjugação do corpo como instrumento de trabalho e não como prazer. “A civilização é, acima de tudo progresso no trabalho”85. Trabalho aqui, já será colocado como sendo o trabalho alienado, vindouro do principio de desempenho e da mais repressão, que já se mostrou incompatível com o Eros. Numa sociedade movida pelo progresso e pelo trabalho, a sexualidade se coloca restritamente ao serviço da reprodução, causando assim o direcionamento do prazer exclusivamente aos órgãos genitais. O que Freud chamou de Supremacia Genital”.

“Além disso, a sexualidade procriadora é canalizada, na maioria das civilizações, para o âmbito das instituições monogâmicas. Este tipo de organização resulta numa restrição quantitativa e qualitativa da sexualidade; a unificação dos instintos parciais e sua sujeição à função procriadora alteram a própria natureza da sexualidade: de um princípio autônomo governando todo o organismo, converte-se numa função especializada e temporária, num meio para se atingir um fim. Nos termos do princípio de prazer que governa os instintos não-organizados do sexo, a reprodução é, meramente, um subproduto. O conteúdo primário da sexualidade é a função de obter prazer a partir de zonas do corpo; esta função só subseqüentemente foi colocada a serviço da reprodução.” (Marcuse, 1975, 54)
Isso quer dizer que houve uma redução significativa na sexualidade, enquanto antes era o próprio prazer se tornou simplesmente uma busca pelo êxtase no ato do coito, que por certo tempo serviu somente para procriação, mesmo que muitas vezes não possuam esse fim. Mais uma vez a civilização introjetou um costume e se fez acreditar que isso é quase que inerente à própria existência. De modo que mesmo quando não é mais preciso procriar, ainda assim se age da mesma maneira. Nós guardamos os costumes de tempos distantes, colocados nos tempos atuais por forma de tabus.
Contemporaneidade e conclusão

É com base nessa hipótese que propor-se-a um esclarecimento sobre os valores na historia da civilização sob a ótica marcusiana. De como o princípio de prazer foi subjugado pelo princípio de realidade, que por sua vez deu lugar ao princípio de desempenho, assim construindo a civilização tal qual conhecemos. Contudo, depois de uma certa iluminação sobre o problema outra questão faz questão de aparecer: seria possível uma civilização não repressiva? Esse é talvez o ponto de maior discordância entre Freud e Marcuse. Freud não vê saída para esse problema, ao passo que Marcuse acredita na possibilidade da existência de um estado não repressivo. É muito importante ressaltar a distância temporal que separa os dois. Apesar de não parecer muito grande (Freud nasceu em 1856, Marcuse em 1898), os dois vivenciaram suas idades maduras em mundos bastante distintos, enquanto Sigmund viveu no mundo moderno, Herbert teve sua maturidade intelectual vivenciada no chamado mundo pós-moderno. Essa diferença dá certa vantagem ao discípulo, visto que Freud não presenciou muitas das mudanças que transformaram radicalmente a história da humanidade, como por exemplo segunda guerra mundial, guerra fria, queda do muro de Berlim, primavera de Praga, maio de 68 em Paris em outros fatos que moldaram a contemporaneidade. Entretanto, existe também na época pós-moderna, dentre outros, um defensor da tese freudiana. Na verdade não exatamente da mesma forma, mas de maneira a adaptá-la aos tempos atuais. O polonês Zigmunt Bauman, no seu livro O mal-estar da pós-modernidade, nos fala de que maneira houve a mudança do mundo moderno para o mundo pós-moderno
“A liberdade individual, outrora responsabilidade de um (talvez o) problema para todos os edificadores da ordem, tornou-se o maior dos predicados e recursos na perpetua autocriação do universo humano.
Você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa: a antiga norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de felicidade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais” (Bauman, 1998, 10)

É bastante difícil assimilar o pensamento de Bauman ao nosso tempo. A meu ver, existe menos liberdade hoje do que na idade moderna. Salve algumas exceções de raras pessoas, em raras ocasiões, o mundo está cada dia mais opressor. A razão opressora não poupa nem mais os ricos. Hoje a classe dominante sofre igualmente ao proletariado os efeitos de séculos de sublimação. Foi criado até um termo para designar a quem consegue se recalcar mais: Workaholic. É claro que a diferença é que se alguém da classe dominante resolver recusar esse sistema, ele poderá fazê-lo (em partes) e ao passo que o pobre, mesmo que decida ter um pouco de liberdade, sofre com a opressão externa.
“Se a construção de um desenvolvimento instintivo não repressivo se orientar, não pelo passado sub-histórico, mas pelo presente histórico e a civilização madura, a própria noção de utopia perde o seu significado. A negação do princípio de desempenho emerge não contra, mas com o progresso da racionalidade consciente; pressupõe a mais alta maturidade da civilização. As próprias realizações do princípio de desempenho intensificaram a discrepância entre os processos do inconsciente arcaico e da consciência do homem, por uma parte, e as suas potencialidades concretas, por outra. A história da humanidade parece tender para outro ponto culminante nas vicissitudes dos instintos. E à semelhança dos anteriores momentos cruciais, a adaptação da estrutura mental arcaica ao novo meio significaria outra catástrofe uma transformação explosiva no próprio meio. Contudo, embora o primeiro ponto culminante fosse, de acordo com a hipótese de Freud, um evento na história geológica, e o segundo ocorresse no princípio da civilização, o terceiro ponto culminante localizar-se-ia no nível supremo atingido pela civilização. O ator, nesse evento, já não seria o homem animal histórico, mas o sujeito consciente, racional, que dominou e se apropriou do mundo objetivo como arena para as suas realizações.” (Marcuse, 1975, 138-139)
Ao contrário de Bauman e de Freud, Marcuse não vê a historia da civilização como uma troca, ele enxerga como dialética. As mudanças na civilização não ocorrem da forma proposta por Freud. O autor de Eros e a civilização nos mostra que não se pode simplesmente imaginar uma mudança de estágio, desconsiderando toda a sua herança, seja material, seja cultural. Esse é o pensamento dialético. O que Bauman aponta como sendo uma mudança de paradigma da idade moderna para a contemporânea, na verdade está longe de ser uma grande mudança. Os sintomas apontados pelo mesmo são nada mais que pequenos distúrbios diante a repressão ainda reinante, pequenas fugas que representam o desejo de retorno a um estado de prazer.
“Contudo, o processo que acabamos de esboçar envolve não uma simples descarga, mas uma transformação da libido da sexualidade refreada, sob a supremacia genital, à erotização da personalidade total. É uma propagação e não uma explosão de libido sua disseminação nas relações privadas e sociais que preencherá a lacuna mantida entre elas por um princípio de realidade repressivo. Essa transformação da libido seria o resultado de uma transformação social que autorizou o livre jogo de necessidades e faculdades individuais. Em virtude dessas condições, o livre desenvolvimento da libido transformada, para além das instituições do princípio de prazer, difere essencialmente da liberação da sexualidade reprimida, dentro do domínio dessas instituições. Este último processo faz explodir a sexualidade suprimida; a libido continua acusando a marca da supressão e manifesta-se nas abomináveis formas tão bem conhecidas na história da civilização; nas orgias sádicas e masoquistas das massas desesperadas, das elites da sociedade, dos bandos famintos de mercenários, dos guardas de presídios e campos de concentração. Tal descarga de sexualidade fornece uma saída periodicamente necessária para a frustração insuportável; robustece, mais do que debilita, as raízes da coação instintiva; conseqüentemente, têm sido usadas, repetidas vezes, como um instrumento apropriado para os regimes supressivos. Em contraste, o livre desenvolvimento da libido transformada, dentro das instituições transformadas, embora erotizando zonas, tempo e relações previamente tabus, reduziria ao mínimo as manifestações de mera sexualidade mediante a sua integração numa ordem muito mais ampla, incluindo a ordem de trabalho.” (Marcuse, 1975, 177)
Com isso, Marcuse esclarece que esses exageros vistos no mundo atual não ocorreriam numa civilização não repressiva. Ele é bastante claro ao afirmar que essa civilização madura, não é a do boêmio decadente. Portanto não se pode imaginar uma sociedade regida por extremos pervertidos sexuais, violentos ou coisas que o valham. Na verdade é o contrario disso. Numa civilização madura, todos esses problemas ocasionados pela vontade de retorno não existiriam, pois à volta a um estado de prazer já estaria concluía e a libido fluiria livremente e de forma natural. Mais alem, o pensador em questão elucida como esses novos valores estariam.
“Talvez seja este o único contexto em que a palavra ordem perde a sua conotação repressiva: aqui, é a ordem de gratificação que Eros, livre, cria. Triunfos estáticos sobre os dinâmicos, mas é uma estática que se movimenta em toda a sua plenitude: uma produtividade que é sensualismo, jogos e canções. Qualquer tentativa para elaborar as imagens assim transmitidas será frustradora, visto que, fora da linguagem da arte, mudam de significação e se fundem com as conotações que receberam sob o princípio repressivo de realidade. Mas devemos tentar reconstituir o caminho até as realidades a que essas imagens se referem.” (Marcuse, 1975, 141)
Mesmo seguindo esse alerta sobre elaborar uma imagem de uma cultura comandada por tais valores, irei tentar discorrer de maneira a explicar o funcionamento de algumas organizações nesse novo mundo proposto. Em muitas pessoas o primeiro pensamento em relação a essa mudança é sobre o que aconteceria com a produção. Bem, sabe-se que na verdade todo o esforço desprendido no intuito da produção é bem maior que o necessário. Existe uma superprodução que tem como objetivo movimentar a economia e enriquecer ainda mais os que já possuem muito. Entretanto, não seria possível a abolição total do labor, mesmo que as evoluções tecnológicas tendam para a automação e automatização, para Marcuse, ainda assim seria impossível uma total abolição. O que ocorreria era uma mudança na própria organização do trabalho, na qual sobraria mais tempo para o ócio. Reorganizando a produção tendo em vista esses novos valores, se produz somente o necessário para desenvolver as potencialidades humanas. E com a tecnologia herdada da mais repressão não seria mais necessário subjugar outros homens para prolongar o seu prazer.
Pretende-se, no final desse texto que se tenha apresentado uma pequena apresentação do pensamento de Herbert Marcuse que é o desenvolvimento da oposição ao asceticismo, e ainda assim muito longe do hedonismo. É uma axiologia que preza, sobretudo pela liberdade prática. Enfim, terminarei como sugerido pelo próprio Marcuse, como sendo a maneira mais válida de se retratar uma civilização não repressiva; a linguagem da arte.

La vraie civilization... ríest pas dans le gaz, ni dans la vapeur, ni dans les tables tournantes. Elle est dans la diminution des traces du pêché originel
[A verdadeira civilização... não está no gás, no vapor ou nas plataformas giratórias. Está na diminuição dos vestígios do pecado original.]


Là, tout n est qu ordre et beauté,
Luxe, calme, et volupté.
[Aí, tudo é ordem e beleza. Luxo, calma e voluptuosidade.]
Re Astride 19/10/2017minha estante
Que aula! Muito obrigada pela maravilhosa experiência de ler sua resenha.




Adriana Scarpin 11/11/2018

Esse livro é um lufar de inteligência nesses tempos em que as pessoas se orgulham de sua indigência intelectual, a partir das pulsões freudianas básicas Marcuse semeia questões sobre a hipótese repressiva e subverte seus resultados e isso abrange desde o trabalho até às questões estéticas. Livraço.
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Filino 08/03/2020

Ricas reflexões sobre homem e sociedade
Em sua "interpretação filosófica" (como enuncia o título) do pensamento de Sigmund Freud, Marcuse oferece uma ferramenta instigante e original para a análise da própria sociedade. Ressalta que não é necessário recorrer a revisionismos para constatar que o pensador austríaco traz, sim, uma reflexão com um caráter sociológico. Dessa forma, conduzindo o leitor pelos próprios textos freudianos, Marcuse parte de pressupostos ontogenéticos (o homem individualmente considerado) e filogenéticos (a espécie). Os instintos e a repressão de um lado, a horda primordial e o aparecimento da sociedade e da moralidade, de outro, são exaustiva e didaticamente explicados ao leitor, em capítulos nem curtos nem longos, acessíveis mesmo para os que não são estudiosos de nenhum dos pensadores. Ao vermos Marcuse tratar da sociedade do seu tempo (segunda metade do século XX), ficamos tentados a imaginar como ele trataria do mundo atual - ao que parece, muito mais angustiado e ansioso do que outrora, sobretudo com o advento das redes sociais. Seria um objeto de estudo e tanto...

Eros e Thanatos, impulso de amor e impulso de morte, esses e outros elementos igualmente se fazem presentes. Ao final da obra, uma severa crítica aos que se propõem a reinterpretar o pensamento freudiano escamoteando certos elementos que, segundo Marcuse, de modo algum poderiam ser desprezados. O nome principal contra quem investe Marcuse é Erich Fromm, que advogaria uma adaptação do homem ao meio de um modo que iria de encontro ao que o próprio Freud teria enunciado.

Uma excelente obra. De interesse para os mais diversos campos do conhecimento.
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Carla.Parreira 21/10/2023

Eros e civilização
?
Eis um apanhado geral da leitura: A substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade é o grande acontecimento traumático no desenvolvimento no homem no desenvolvimento do gênero ou evolução da civilização (filogênese), tanto quanto do indivíduo ou evolução pessoal (ontogênese). Este último ocorre durante o período inicial da infância, e a submissão ao princípio de realidade é imposto pelos pais e outros educadores. Mas, tanto no nível genérico como no individual, a submissão é continuamente reproduzida. O princípio de realidade materializa-se num sistema de instituições. E o indivíduo, evoluindo dentro de tal sistema, aprende que os requisitos do princípio de realidade são os da lei e da ordem, e transmite-os à geração seguinte. O fato do princípio de realidade ter de ser continuamente restabelecido no desenvolvimento do homem indica que o seu triunfo sobre o princípio de prazer jamais é completo e seguro. O inconsciente retém os objetivos do princípio de prazer derrotado. Rechaçada pela realidade externa ou mesmo incapaz de atingi-la, a força total do princípio de prazer não só sobrevive no inconsciente, mas também afeta, de múltiplas maneiras, a própria realidade que superou o princípio de prazer. A subjugação efetiva dos instintos, mediante controles repressivos não é imposta pela natureza, mas pelo homem. O pai primordial, como arquétipo da dominação, inicia à reação em cadeia de escravização, rebelião e dominação reforçada, que caracteriza a história da civilização. Mas, desde a primeira e pré-histórica restauração da dominação, após a primeira rebelião contra esta, a repressão externa foi sempre apoiada pela repressão interna: o indivíduo escravizado introjeta seus senhores e suas ordens no próprio aparelho mental. A luta contra a liberdade reproduz-se na psique do homem, como a autorrepressão do indivíduo reprimido, e a sua autorrepressão apoia, por seu turno, os senhores e suas instituições. É essa dinâmica mental que Freud desvenda como a dinâmica da civilização. A libertação psicanalítica da memória faz explodir a racionalidade do indivíduo reprimido. À medida que a cognição cede lugar à recognição, as imagens e impulsos proibidos da infância começam a contar à verdade que a razão nega. A libertação do passado não termina em sua reconciliação com o presente. Contra a coação autoimposta da descoberta, a orientação sobre o passado tende para uma orientação sobre o futuro. Ora, as restrições externas que, primeiro, os pais e, depois, outras entidades sociais impuseram ao indivíduo são introjetadas no ego e convertem-se na sua consciência; daí em diante, o sentimento de culpabilidade e a necessidade de punição, gerada pelas transgressões ou pelo desejo de transgredir essas restrições (especialmente, na situação edípica) impregna a vida mental. Contudo, as repressões cedo se tornam inconscientes, como se fossem automáticas, e uma grande parte do sentimento de culpa mantém-se inconsciente. O indivíduo torna-se instintivamente reacionário tanto no sentido literal como no figurativo. Exerce contra si próprio, inconscientemente, uma severidade que, outrora, era adequada a um estágio infantil da sua evolução, mas que há muito tempo se tornou obsoleta, à luz das potencialidades racionais da maturidade (individual e social). O indivíduo pune-se (e, depois, é punido) por feitos que já foram anulados ou que já não são incompatíveis com a realidade civilizada, com o homem civilizado. Assim, o superego impõe não só as exigências da realidade, mas também as de uma realidade pretérita. Em virtude desses mecanismos inconscientes, o desenvolvimento mental retarda-se. Quando o princípio de realidade ganha raízes, mesmo em sua mais primitiva e mais brutalmente imposta forma, o princípio de prazer passa a ser algo assustador e terrível; os impulsos para a livre gratificação defrontam-se com a ansiedade e esta apela para que a protejam contra aqueles. Os indivíduos têm de defender-se contra o espectro de sua integral libertação da carência e da dor, contra a gratificação integral. Esta última é representada pela mulher que, como mãe, forneceu uma vez, pela primeira e última vez, tal gratificação. São esses os fatores instintivos que reproduzem o ritmo da libertação e dominação. Quando a mera consciência atinge o estágio de autoconsciência, revela-se a si mesma como ego, e o ego é, primeiro, desejo: só pode tornar-se cônscio de si mesmo através do satisfazer-se por si mesmo e por um outro. Mas tal satisfação envolve a negação do outro, pois o ego tem de provar a si mesmo que é, verdadeiramente, um ser-em-simesmo contra toda a alteridade. Com o triunfo da moralidade cristã, os instintos vitais foram pervertidos e restringidos; a má consciência foi ligada a uma culpa contra Deus. A fraqueza e desalento do homem, a desigualdade de poder e riqueza, a injustiça e o sofrimento, tudo foi atribuído a um crime e culpa transcendentes; a rebelião passou a chamar-se pecado original, desobediência a Deus; e a luta pela gratificação tornou-se concupiscência. A verdadeira liberdade está só na ideia. Assim, a libertação é um evento espiritual. O homem só se torna ele mesmo quando a transcendência for conquistada, quando a eternidade se tornar presente no aqui e agora. O eterno retorno é a vontade e visão de uma atitude erótica em relação ao ser, na qual a necessidade e a realização coincidem. Com a introdução do princípio de realidade, um modo de atividade do pensamento cindiu-se e manteve-se livre do critério de realidade, continuando subordinado exclusivamente ao princípio de prazer. É o ato de elaboração da fantasia, que começa logo com os brinquedos infantis e, mais tarde, prossegue como divagação e abandona sua dependência dos objetos reais. A fantasia desempenha uma função das mais decisivas na estrutura mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade; preserva os arquétipos do gênero, as perpétuas, mas reprimidas ideias da memória coletiva e individual, as imagens tabus da liberdade. Como processo mental independente e fundamental, a fantasia tem um valor próprio e autêntico, que corresponde a uma experiência própria nomeadamente, a de superar a antagônica realidade humana. A imaginação visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Conquanto essa harmonia tenha sido removida para a utopia pelo princípio de realidade estabelecido, a fantasia insiste em que deve e pode tornar-se real, em que o conhecimento está subentendido na ilusão. Teoricamente, a diferença entre saúde mental e neurose reside apenas no grau e eficácia da resignação: a saúde mental é uma resignação eficiente, vitoriosa e normalmente tão eficiente que se manifesta como uma satisfação moderadamente feliz. A neurose e a psicose são ambas uma expressão da rebelião do id (instintos e desejos provindos do inconsciente) contra o mundo exterior, ou seja, é uma rebeldia interna a cerca de sua própria dor, causando assim uma relutância e incapacidade em adaptar-se à necessidade. Essa rebelião, embora se originando na natureza instintiva do homem, é uma doença que tem de ser curada não só porque é uma luta contra um poder irremediavelmente superior, mas porque é uma luta contra a necessidade. Temos o destino de sermos humanos, mas que tipo de humanos seremos, depende de nossa vivência, ou seja, depende das imagens arquetípicas que serão ativadas na nossa relação, interação com o mundo, com o outro e à cultura a qual pertencemos. A alma nua e exposta sempre evoca o amor. É por isso que é tão fácil amar as crianças e os animais ? suas almas raramente estão ocultas. Se a alma de uma pessoa estiver sento encoberta ou protegida da outra de alguma forma, o amor não pode ser evocado. Dar amor sem que nossa alma não esteja exposta é sempre ameaçador para o outro. Mas quando duas pessoas se encontram sem barreiras, o amor flui automaticamente em ambas as direções. Não é ato de vontade, e sim fluxo espontâneo. E isso não ocorre por causa do ato de dar ou receber amor, e sim como resultado de revelação mútua. Na sublimação ama-se o próprio amor e não o objeto (paixão).
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Rafa 10/04/2012

Eros e civilização (Minha resenha não seguirá propriamente a estrutura padrão, Trata-se de trechos comentados)
Para entender o livro, é necessário que se tenha noção da concepção freudiana sobre o eros, libido e inconsciente.
"Sempre que o elevado nível de vida não basta para reconciliar as pessoas com suas vidas e governantes, a 'engenharia social' da alma e 'ciência de relações humanas' fornecem a necessária catexe libidinal.(...)Como a sociedade afluente depende cada vez mais da ininterrupta produção e consumo supérfluo, dos novos inventos, do obsoletismo planejado e dos meios de destruição, os indivíduos tem de adaptar-se a esses requisitos de um modo que excede os caminhos tradicionais." (p.13)
(Continuo depois)
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Rafael 27/12/2012

Resenha Crítica
(resenha originalmente publicada em nosso blog http://arazaoinadequada.wordpress.com/ )

Marcuse, Hebert. Eros e a Civilização – uma crítica filosófica ao pensamento de Freud. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1955.

Marcuse foi um filósofo alemão do séc. XX; fez parte do Instituto de Pesquisas Sociais, instituição que ficou conhecida como a Escola de Frankfurt, junto com outros importantes teóricos da época como Adorno e Horkheimer. Seus trabalhos tiveram grande impacto no campo político e foram responsáveis por influenciar movimentos como, por exemplo, a greve de maio de 68. Em 1955 lançou a obra “Eros e a Civilização” onde, dialogando com conceitos marxistas e freudianos, faz uma análise da sociedade da época.
Na primeira parte do livro, já usando conceitos de Freud, Marcuse expõe o que entende ser a sociedade atual e o impacto que esta tem na formação do princípio de realidade do indivíduo. Para o autor, assim como para Freud, a civilização se forma a partir da repressão dos instintos, ou seja, o princípio de prazer é limitado por determinadas condições necessárias à constituição da sociedade. Estes impulsos devem ser recalcados ou sublimados, e neste processo, forma-se o princípio de realidade de nossa civilização. Contudo, Marcuse afirma, agora usando um conceito de Marx, que além da repressão postulada por Freud, a atual sociedade industrial, a partir do princípio de desempenho, impõe também a mais-repressão, exigindo, assim, mais de Eros, princípio de vida, para a manutenção da forma vigente de constituição social. Seguindo essa lógica, o princípio de realidade do indivíduo moderno é completamente moldado pelo princípio de desempenho; as exigências do mundo, através da mais-repressão, seriam responsáveis pela constituição da subjetividade alienada e patológica criando, então, sujeitos voltados para a lógica de mercado, consumidores que se utilizando daquilo que os oprime, afirmam sua liberdade no próprio ato de comprar, “a produção e o consumo reproduzem e justificam a dominação”. Nesse contexto, diz Marcuse, a própria normalidade é problematizada e as patologias, como, por exemplo, a neurose, seriam o protesto do corpo contra sua reificação, sua transformação em apêndice da máquina, uma revolta contra os próprios alicerces que sustentam a civilização no intuito de dar um uso focado em si mesmo. O excesso de repressão seria mecanismo de manutenção da própria civilização que através do enfraquecimento de Eros, impossibilitaria a revolução e a procura da liberdade autêntica, ”a civilização tem que se defender contra o espectro de um mundo que possa ser livre”. Contudo, a dessexualização contínua daria vazão à pulsão de morte, impulso este que estaria levando a sociedade à sua própria destruição.
Na segunda parte do livro, o autor se propõe a ir “além do princípio de realidade”, se contrapondo a Freud e procurando mostrar que a mais-repressão é resultado de vários processos que, apesar de naturais e históricos, podem ser revertidos. Portanto, mesmo que a organização social tenha uma lógica interna, isso não a impede de ser rompida por outras formas de organização, de constituição de princípio de realidade; para Marcuse, a base para uma constituição social libertária estaria contida em sua própria organização atual repressiva. Para provar sua teoria, Marcuse primeiro procura na arte por imagens que encarnem seu ideal de libertação repressiva, e as encontra nas figuras de Orfeu e Narciso, que simbolizariam a “Grande Recusa” em face da sociedade. Isto através de sua busca pela união entre cultura, arte e liberdade; a busca de uma “ordem superior no mundo, um mundo sem repressão”. Schiller é exposto nesse momento como teórico que preconiza a arte como esta forma de libertação, porque segue o principio de prazer, uma lógica de gratificação. Contudo, isso não explica como uma sociedade pode gerar a liberdade sendo que a não-liberdade faz parte de suas próprias engrenagens. Marcuse afirma, então, que o próprio princípio de desempenho, este sustentado pela mais-repressão, constituirá uma sociedade cada vez mais tecnológica e avançada onde a necessidade de sublimação de pulsões para a atividade laborativa será cada vez menos necessária. Quanto mais a sociedade industrial focar suas forças na produção, crescimento e desenvolvimento tecnológico, menos será necessário, no futuro, mobilização de energia instintiva em um trabalho alienante e desgastante. A diminuição do esforço na busca de gratificação terminaria por levar as estruturas de mais-repressão ao colapso. Este sistema depende do adiamento da gratificação e do enfraquecimento de Eros, que situa o indivíduo como meio e não como fim; contudo, uma organização que favorecesse Eros criaria “novas e duradouras relações de trabalho”. A diminuição da mais-repressão, em face do favorecimento da gratificação pelos meios tecnológicos, não elimina a necessidade de sublimação para o trabalho, mas a própria definição de trabalho ganharia um caráter de atividade lúdica, porque todo o princípio de realidade, que também modela e perpetua este sistema, se alteraria, criando novas formas de experienciar e relacionar-se com o mundo. Freud acreditava que a eliminação da repressão destruiria a sociedade, que a abdicação dos instintos é fator essencial para sua manutenção, mas o autor de “Eros e Civilização” se contrapõe afirmando que, na verdade, um excesso de repressão, nesse caso definido por ele como mais-repressão, foi imposto por uma sociedade industrial e que isto estaria causando o próprio sufocamento do homem e, como consequência, sua própria eliminação. Para Marcuse, a sociedade tem condições de sustentar-se através da eliminação dessas condições castradoras e transformar-se em outra completamente diferente, onde haveria espaço para o lúdico, onde “Eros, os instintos de vida, seriam libertados num grau sem precedentes”.
No epílogo, Marcuse conclui que a terapia psicanalítica seria uma das responsáveis pela atual constituição social; isto se daria pelo próprio caráter ideológico de sua aplicação. Enquanto a psicanálise fundamenta o homem como um indivíduo doente em função de uma sociedade também enferma, a terapia psicanalítica, escondendo-se atrás de uma “ciência neutra”, procura tratar o paciente para recolocá-lo nos mesmos meios sociais que propiciaram seu adoecimento. Entretanto, mesmo que a terapia psicanalítica trabalhe a favor do status quo, a teoria criada por Freud e apropriada posteriormente por Marcuse explicitaria as condições de libertação das formas repressoras vigentes na sociedade industrial atual.
A importância deste trabalho pode ser sentida até hoje, tanto pelos meios acadêmicos, como grades curriculares das universidades e publicações de artigos e teses, quanto pela relevância das idéias que ainda se mostram atuais. A explosão de revoltas (tais como a primavera árabe), notícias de suicídios (foxcom e telecom), greves (na Europa, em geral), crises (pelo excesso de especulação e/ou produção), incentivo e compulsão consumista, todas estas características de nossa sociedade nos levam a pensar que alguma coisa está errada e o pensamento de Marcuse ainda é uma poderosa ferramenta de análise destas contradições.
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Wagner 09/11/2018

O TRABALHO É PENOSO...

(...) A civilização é, acima de tudo, progresso no trabalho - quer dizer, trabalho para o agenciamento e ampliação das necessidades da vida. Este trabalho realiza-se, normalmente, sem satisfação alguma em si mesmo; para Freud, é desagradável e penoso (...)

in: MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. pg. 85. - A Dialética da civilização.
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