Chris 04/08/2010
Axiologia na estética erótica de Herbert Marcuse
O ponto de partida desse trabalho, de onde desenvolverei as idéias é afirmação: A civilização se fez e se mantém a custa da repressão do o prazer e da própria felicidade, que são subjugadas pela razão em favor do progresso. De modo que tentarei desmistificar a imagem da “razão libertadora” e argumentar que na sua própria concepção a razão é justamente o fator repressor e opressor. Repressão essa criou os alicerces dos valores da nossa cultura, que valoriza o sofrimento e o labor, desde que sejam favoráveis para uma evolução que nós nem sabemos a que se destina. Para que seja possível um estudo acerca dos valores criados pela cultura, primeiramente faz-se necessário caracterizar esses valores e localizá-los. Começaremos pela religião.
Religião
Começaremos destrinchando a origem desses valores, hoje superlativizados pelo modo de produção capitalista, pela moral cristã. O próprio advento da cultura cristã nada mais é que uma visão totalmente distorcida de sua origem. A moral que ergueu a civilização a partir da idade média, de sacrifício e amor ao trabalho, não está totalmente em conformidade com os textos originais de tal instituição. O escritor marxista francês, Paul Lafargue em sua obra Direito a Preguiça aponta essa inconformidade
“Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora. Em vez de reagir contra esta aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho. Homens cegos e limitados, quiseram ser mais sábios do que o seu Deus; homens fracos e desprezíveis, quiseram reabilitar aquilo que o seu Deus amaldiçoara.” (Lafargue, 1999, 3-4)
Ao que Lafargue trata como maldição, pode-se localizar facilmente no livro sagrado do cristianismo. Nele, deus deixa bem claro que o trabalho, dentre outras coisas, é obra de seu castigo
“E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela: maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão (Gên 3, 16-19).”
Percebe-se então que o labor, que é encarado como uma boa coisa pela nossa cultura é na verdade considerado por deus como algo digno de ser um dos seus maiores castigos. Deus esse que possui um trabalho que é caracterizado por Lafargue como sendo um ótimo exemplo de como o trabalho deveria ser; o onipotente criou tudo em seis dias e descansou o resto da eternidade. Então, ao percebemos a proximidade e o gosto de deus pela preguiça, somos tentados a questionar porque os seus discípulos criaram essa imagem tão laboral do deus preguiçoso. Encontraremos a resposta a essa questão no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, do sociólogo alemão Max Weber. Nele descobrimos que a origem desse pensamento está não no cristianismo geral, e sim no protestantismo e mais especificamente no calvinismo que deu origem ao puritanismo. Essa escola de pensamento religioso teve inicio da Inglaterra depois da reforma luterana e teve grande importância no desenvolvimento da revolução industrial. Além disso, foram os puritanos que fundaram a maior potência da atualidade, os Estados Unidos da América. Ou seja, o pensamento em questão está na base do modo de produção atual. Todavia, como já foi apontada anteriormente, essa visão dos puritanos calvinistas é um pensamento particular e diferente de outras religiões também baseadas na bíblia. Temos como exemplo, a religião católica que possui ordens mendicantes. Portanto, percebo que esse pensamento não é a verdadeira causa do problema, e sim mais um efeito. Que mesmo sendo efeito é causa de muitas outras coisas, como a própria amplificação da razão repressora. Irei aqui tratar da verdadeira origem do problema, que se deu muito antes do advento do cristianismo. O começo da humanidade é também o começo da repressão
Origem da civilização repressiva
Para Marcuse, a transformação do homem animal em ser humano, acarretou não só mudanças na sua natureza, bem como também ocasionou uma transvaloração nos princípios que governam os anseios. Essa mudança é colocada como sendo do princípio de prazer em princípio de realidade. O princípio de prazer está ligado unicamente ao prazer momentâneo, desse modo se tornando incompatível com o meio humano e natural. Em outras palavras, pode-se dizer que uma vida governada pelo princípio de prazer é incompatível com o próprio prazer, de modo que a vida em si necessita de coisas externas ao homem, como por exemplo, a comida. Bem como é necessária também à manutenção da própria vida; segurança e procriação. Isso quer dizer que essa mudança de estágio tão criticada por Freud, foi na verdade algo que ocorreu em beneficio do homem. Se o homem vivesse só do produto da terra de suas redondezas, sem se preocupar em trabalhar para mantê-lo e assegurá-lo, iria por acabar fazendo mais esforço para suprir suas necessidades. Se não tivesse criado agricultura nem a pecuária, o esforço seria imensamente maior que caçar ou colher somente quando tivesse fome. Não podemos esquecer que tanto os grupos de animais quanto a vegetação estão passiveis a diversas mutações, tornando muitas vezes, se não impossível, muito complicada e desprazerosa a vivencia em certos lugares do mundo. Essa tese é à base da obra, a luta entre o instinto de vida (Eros), que é a pulsão criadora, livre para desenvolver as potencialidades humanas em busca da gratificação que é na verdade o próprio prazer. E o instinto de morte (Thanatos), que é a pulsão repressiva que tem como objetivo a manutenção da vida, a ausência de sofrimento, o retorno ao estado inorgânico. Ao que me parece, essa é a visão de Marcuse sobre a mudança do domínio do prazer para o domínio da realidade.
E é sob esse domínio que nasce a razão. Contudo, faz-se necessário salientar que essa razão ainda não pode estar localizada no termo “razão repressora”. Essa razão no inicio do seu desenvolvimento é a que torna o sujeito pensante, que faz a distinção dentre outras, entre falso e verdadeiro, bom e mau, útil e inútil. A pesar de que toda razão é repressora, essa é uma repressão necessária para a vida humana e me parece que nesse estágio ainda seria possível uma conciliação entre razão e prazer.
“Certo, toda e qualquer forma de sociedade, de civilização, tem de impor um tempo de trabalho para a satisfação das necessidades e superfluidades da vida. Mas nem todas as espécies e modos de trabalho são essencialmente irreconciliáveis com o princípio de prazer.” (Marcuse, 1975, 59)
Tudo indica que para o pensador alemão, o grande trauma ocorre no momento em que o principio de realidade passa a ser continuamente restabelecido, transformando-se em princípio de desempenho, ocasionando a mais-repressão •. Quer dizer, a humanidade acabou por extrapolar da razão que a principio servia o homem, e, sobretudo, garantia o prazer. Não creio que seja um exagero dizer que a razão servia ao principio de prazer. Imagino que nesse momento foi feita uma escolha inconsciente relembrando nossos distantes antepassados: Os macacos (pelo fato, deste trabalho não se tratar de um estudo antropológico, tampouco biológico, irei abordar esse tema mesmo que de forma bastante sucinta, pois acredito que seja deveras interessante). Dentre diversos tipos de macacos, dois possuem o DNA quase idênticos ao do homo sapiens, os chimpanzés e os bonobos. Apesar de ambos os animais serem chimpanzés, tratarei aqui do bonobo (Pan paniscus), conhecido também como chimpanzé anão, somente como bonobo, e chamarei simplesmente de chimpanzé o chimpanzé-comun (Pan troglodytes). Embora pertençam à mesma família, a diferença de comportamento entre as duas espécies é enorme. Por um lado os chimpanzés possuem uma sociedade centrada no macho alfa, as fêmeas são tratadas como propriedades e possuem um comportamento agressivo com os seus iguais. São os únicos animais não inteligentes a matar por poder, não é raro que outros machos se unam no intuito de matar o macho dominante. Por outro, os bonobos são solidários, possuem uma sociedade na qual a fêmea tem extrema importância. Não existe imposição nem repressão por nenhuma parte do bando, ao invés de usarem violência, a arma que eles possuem para enfrentar os conflitos é o sexo. Apesar de que as duas espécies possuem praticamente o mesmo nível de inteligência, é bastante clara a diferença da forma de vida. Contudo, deve-se lembrar da importância do meio natural na evolução das duas raças. Acredito que o grande fato diferencial, é que os bonobos vivem em regiões com fartura de alimento e água e longe de grandes predadores. Portanto, coloco a escolha humana como sendo no momento do nascimento do principio de realidade, quando ele pôde fazer com que houvesse certa facilidade para suprir suas necessidades. É especificamente nesse momento, que o homem possui a liberdade de escolher se ele quer se desenvolver como bonobo, ou como chimpanzé. O resultado da escolha é bastante claro.
Desenvolvimento da civilização repressiva
Desde então a civilização vem se desenvolvendo de forma extraordinária. Em compensação perdeu-se a liberdade e aumentou-se a exploração também de forma extraordinária. Um preço bastante alto a ser pago. Para Marcuse, o começo disso tudo ocorreu primeiramente na horda primordial:
“Num dado momento da vida do gênero homem, a vida grupal foi organizada por dominação. E o homem que conseguiu dominar os outros era o pai, quer dizer, o homem que possuía as mulheres desejadas e que, com elas gerara e conservara vivos os filhos e filhas. O pai monopolizou para si próprio a mulher (o prazer supremo) e subjugou os outros membros da horda ao seu poder. Conseguiu estabelecer seu o seu domínio porque lograra excluir os outros membros do prazer supremo? Em todo caso, para o grupo como um todo, a monopolização do prazer significou uma distribuição desigual de sofrimento” (Marcuse, 1975, 69)
Assim como alguns animais (vide chimpanzés), as primeiras sociedades humanas também foram desenvolvidas tendo como centro o “macho alfa”, que nesse caso está caracterizado como sendo o “pai’, que podemos traduzir como sendo aquele que por um lado era responsável pela segurança e ordem do grupo, e por outro sendo o déspota, repressor que monopolizou o prazer dos outros em virtude unicamente do prolongamento do seu.
Entretanto, o autor assinala que a civilização só começa realmente no momento em que a repressão é auto-imposta:
“... esse ódio culmina na rebelião dos filhos exilados, o assassinato e devoração coletiva do pai, e o estabelecimento do clã dos irmãos, que por sua vez, deifica o pai assassinado e introduz aqueles tabus e restrições que, segundo Freud, geraram a moralidade social.” (Marcuse, 1975, 70-71)
Em outro parágrafo, Marcuse vai explicitar de outra o forma o motivo pelo qual os filhos auto introjetaram a moralidade do pai:
“Mas os filhos querem a mesma coisa que o pai; querem a duradoura satisfação de suas necessidades. Só podem atingir esse objetivo repetindo, numa nova forma, a ordem de dominação que controlava o prazer e por isso preservava o grupo.” (Marcuse, 1975, 72)
Em outras palavras, pode-se dizer que existe uma dupla vontade dos filhos em imitarem o comportamento do pai. Por um lado, o desejo egoísta de ter um prazer duradouro que precisa ser à custa de um terceiro. Por outro, a constatação de que a repressão dos instintos nos outros manteria o status quo. Contudo, também é imprescindível apontar a responsabilidade da “culpa” gerada pela ambivalência das emoções relativas ao pai. Mesmo com o desejo que de fato se realizou de matá-lo, existia um sentimento de afeição, que contribuiu também para a admiração e vontade de substituição do gestor principal. Foi partindo desse ponto que a razão repressiva foi se desenvolvendo, conquistando espaço, criando valores e heróis culturais relativos ao sofrimento, a labuta e, sobretudo à negação da própria vida.
Mesmo parecendo tão distantes, a razão cientifica parte do mesmo princípio da religião dominante (cristã). Salientaremos aqui, mais precisamente a negação do corpo, aqui entende-se por corpo, os instintos e paixões criados pelo mesmo. Não é de se estranhar essa negação dentro da moral cristã, que se desenvolveu criando a esperança numa vida posterior e não carnal. O problema realmente vem do que devia combater esses preceitos. Infelizmente percebemos que a razão, ao invés de se desenvolver a favor do homem, cresce para um destino não tão diferente da religião, um destino não humano. E mesmo as ciências que estudam o corpo, o vêm somente como objeto e não como sujeito. Por um lado temos uma religião metafísica que prega basicamente a abdicação da “carne”, por outro, têm-se a ciência e a sua racionalidade que também não permite intervenções das paixões.
“A atitude científica já deixou há muito de ser a de antagonista militante da religião, que com igual eficiência rejeitou os seus elementos explosivos e freqüentemente acostumou o homem a uma boa consciência em face do sofrimento e da culpa. Nos domínios da cultura, as funções da ciência e da religião tendem para a complementaridade; através de seus presentes usos, ambas negam as esperanças que outrora suscitaram e ensinam os homens a apreciarem os fatos num mundo de alienação. Neste sentido, a religião deixou de ser uma ilusão e sua promoção acadêmica está em concordância com a predominante tendência positivista. Na medida em que a religião ainda preserva as aspirações obstinadas à paz e à felicidade, as suas ilusões ainda possuem um mais elevado valor de verdade do que a ciência, que trabalha para a eliminação daquelas. O conteúdo reprimido e transfigurado da religião não pode ser libertado mediante a sua submissão à atitude científica.” (Marcuse, 1975,77-78)
Portanto, é assim que se desenvolve a civilização repressora. Que tem como principal fundamento a sublimação , esta, que tirou do homem a principio o prazer imediato, e está o colocando cada vez mais longe das suas mãos, originando a dessexualização do corpo. É necessário entender a subjugação do corpo como instrumento de trabalho e não como prazer. “A civilização é, acima de tudo progresso no trabalho”85. Trabalho aqui, já será colocado como sendo o trabalho alienado, vindouro do principio de desempenho e da mais repressão, que já se mostrou incompatível com o Eros. Numa sociedade movida pelo progresso e pelo trabalho, a sexualidade se coloca restritamente ao serviço da reprodução, causando assim o direcionamento do prazer exclusivamente aos órgãos genitais. O que Freud chamou de Supremacia Genital”.
“Além disso, a sexualidade procriadora é canalizada, na maioria das civilizações, para o âmbito das instituições monogâmicas. Este tipo de organização resulta numa restrição quantitativa e qualitativa da sexualidade; a unificação dos instintos parciais e sua sujeição à função procriadora alteram a própria natureza da sexualidade: de um princípio autônomo governando todo o organismo, converte-se numa função especializada e temporária, num meio para se atingir um fim. Nos termos do princípio de prazer que governa os instintos não-organizados do sexo, a reprodução é, meramente, um subproduto. O conteúdo primário da sexualidade é a função de obter prazer a partir de zonas do corpo; esta função só subseqüentemente foi colocada a serviço da reprodução.” (Marcuse, 1975, 54)
Isso quer dizer que houve uma redução significativa na sexualidade, enquanto antes era o próprio prazer se tornou simplesmente uma busca pelo êxtase no ato do coito, que por certo tempo serviu somente para procriação, mesmo que muitas vezes não possuam esse fim. Mais uma vez a civilização introjetou um costume e se fez acreditar que isso é quase que inerente à própria existência. De modo que mesmo quando não é mais preciso procriar, ainda assim se age da mesma maneira. Nós guardamos os costumes de tempos distantes, colocados nos tempos atuais por forma de tabus.
Contemporaneidade e conclusão
É com base nessa hipótese que propor-se-a um esclarecimento sobre os valores na historia da civilização sob a ótica marcusiana. De como o princípio de prazer foi subjugado pelo princípio de realidade, que por sua vez deu lugar ao princípio de desempenho, assim construindo a civilização tal qual conhecemos. Contudo, depois de uma certa iluminação sobre o problema outra questão faz questão de aparecer: seria possível uma civilização não repressiva? Esse é talvez o ponto de maior discordância entre Freud e Marcuse. Freud não vê saída para esse problema, ao passo que Marcuse acredita na possibilidade da existência de um estado não repressivo. É muito importante ressaltar a distância temporal que separa os dois. Apesar de não parecer muito grande (Freud nasceu em 1856, Marcuse em 1898), os dois vivenciaram suas idades maduras em mundos bastante distintos, enquanto Sigmund viveu no mundo moderno, Herbert teve sua maturidade intelectual vivenciada no chamado mundo pós-moderno. Essa diferença dá certa vantagem ao discípulo, visto que Freud não presenciou muitas das mudanças que transformaram radicalmente a história da humanidade, como por exemplo segunda guerra mundial, guerra fria, queda do muro de Berlim, primavera de Praga, maio de 68 em Paris em outros fatos que moldaram a contemporaneidade. Entretanto, existe também na época pós-moderna, dentre outros, um defensor da tese freudiana. Na verdade não exatamente da mesma forma, mas de maneira a adaptá-la aos tempos atuais. O polonês Zigmunt Bauman, no seu livro O mal-estar da pós-modernidade, nos fala de que maneira houve a mudança do mundo moderno para o mundo pós-moderno
“A liberdade individual, outrora responsabilidade de um (talvez o) problema para todos os edificadores da ordem, tornou-se o maior dos predicados e recursos na perpetua autocriação do universo humano.
Você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa: a antiga norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os ganhos e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de felicidade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais” (Bauman, 1998, 10)
É bastante difícil assimilar o pensamento de Bauman ao nosso tempo. A meu ver, existe menos liberdade hoje do que na idade moderna. Salve algumas exceções de raras pessoas, em raras ocasiões, o mundo está cada dia mais opressor. A razão opressora não poupa nem mais os ricos. Hoje a classe dominante sofre igualmente ao proletariado os efeitos de séculos de sublimação. Foi criado até um termo para designar a quem consegue se recalcar mais: Workaholic. É claro que a diferença é que se alguém da classe dominante resolver recusar esse sistema, ele poderá fazê-lo (em partes) e ao passo que o pobre, mesmo que decida ter um pouco de liberdade, sofre com a opressão externa.
“Se a construção de um desenvolvimento instintivo não repressivo se orientar, não pelo passado sub-histórico, mas pelo presente histórico e a civilização madura, a própria noção de utopia perde o seu significado. A negação do princípio de desempenho emerge não contra, mas com o progresso da racionalidade consciente; pressupõe a mais alta maturidade da civilização. As próprias realizações do princípio de desempenho intensificaram a discrepância entre os processos do inconsciente arcaico e da consciência do homem, por uma parte, e as suas potencialidades concretas, por outra. A história da humanidade parece tender para outro ponto culminante nas vicissitudes dos instintos. E à semelhança dos anteriores momentos cruciais, a adaptação da estrutura mental arcaica ao novo meio significaria outra catástrofe uma transformação explosiva no próprio meio. Contudo, embora o primeiro ponto culminante fosse, de acordo com a hipótese de Freud, um evento na história geológica, e o segundo ocorresse no princípio da civilização, o terceiro ponto culminante localizar-se-ia no nível supremo atingido pela civilização. O ator, nesse evento, já não seria o homem animal histórico, mas o sujeito consciente, racional, que dominou e se apropriou do mundo objetivo como arena para as suas realizações.” (Marcuse, 1975, 138-139)
Ao contrário de Bauman e de Freud, Marcuse não vê a historia da civilização como uma troca, ele enxerga como dialética. As mudanças na civilização não ocorrem da forma proposta por Freud. O autor de Eros e a civilização nos mostra que não se pode simplesmente imaginar uma mudança de estágio, desconsiderando toda a sua herança, seja material, seja cultural. Esse é o pensamento dialético. O que Bauman aponta como sendo uma mudança de paradigma da idade moderna para a contemporânea, na verdade está longe de ser uma grande mudança. Os sintomas apontados pelo mesmo são nada mais que pequenos distúrbios diante a repressão ainda reinante, pequenas fugas que representam o desejo de retorno a um estado de prazer.
“Contudo, o processo que acabamos de esboçar envolve não uma simples descarga, mas uma transformação da libido da sexualidade refreada, sob a supremacia genital, à erotização da personalidade total. É uma propagação e não uma explosão de libido sua disseminação nas relações privadas e sociais que preencherá a lacuna mantida entre elas por um princípio de realidade repressivo. Essa transformação da libido seria o resultado de uma transformação social que autorizou o livre jogo de necessidades e faculdades individuais. Em virtude dessas condições, o livre desenvolvimento da libido transformada, para além das instituições do princípio de prazer, difere essencialmente da liberação da sexualidade reprimida, dentro do domínio dessas instituições. Este último processo faz explodir a sexualidade suprimida; a libido continua acusando a marca da supressão e manifesta-se nas abomináveis formas tão bem conhecidas na história da civilização; nas orgias sádicas e masoquistas das massas desesperadas, das elites da sociedade, dos bandos famintos de mercenários, dos guardas de presídios e campos de concentração. Tal descarga de sexualidade fornece uma saída periodicamente necessária para a frustração insuportável; robustece, mais do que debilita, as raízes da coação instintiva; conseqüentemente, têm sido usadas, repetidas vezes, como um instrumento apropriado para os regimes supressivos. Em contraste, o livre desenvolvimento da libido transformada, dentro das instituições transformadas, embora erotizando zonas, tempo e relações previamente tabus, reduziria ao mínimo as manifestações de mera sexualidade mediante a sua integração numa ordem muito mais ampla, incluindo a ordem de trabalho.” (Marcuse, 1975, 177)
Com isso, Marcuse esclarece que esses exageros vistos no mundo atual não ocorreriam numa civilização não repressiva. Ele é bastante claro ao afirmar que essa civilização madura, não é a do boêmio decadente. Portanto não se pode imaginar uma sociedade regida por extremos pervertidos sexuais, violentos ou coisas que o valham. Na verdade é o contrario disso. Numa civilização madura, todos esses problemas ocasionados pela vontade de retorno não existiriam, pois à volta a um estado de prazer já estaria concluía e a libido fluiria livremente e de forma natural. Mais alem, o pensador em questão elucida como esses novos valores estariam.
“Talvez seja este o único contexto em que a palavra ordem perde a sua conotação repressiva: aqui, é a ordem de gratificação que Eros, livre, cria. Triunfos estáticos sobre os dinâmicos, mas é uma estática que se movimenta em toda a sua plenitude: uma produtividade que é sensualismo, jogos e canções. Qualquer tentativa para elaborar as imagens assim transmitidas será frustradora, visto que, fora da linguagem da arte, mudam de significação e se fundem com as conotações que receberam sob o princípio repressivo de realidade. Mas devemos tentar reconstituir o caminho até as realidades a que essas imagens se referem.” (Marcuse, 1975, 141)
Mesmo seguindo esse alerta sobre elaborar uma imagem de uma cultura comandada por tais valores, irei tentar discorrer de maneira a explicar o funcionamento de algumas organizações nesse novo mundo proposto. Em muitas pessoas o primeiro pensamento em relação a essa mudança é sobre o que aconteceria com a produção. Bem, sabe-se que na verdade todo o esforço desprendido no intuito da produção é bem maior que o necessário. Existe uma superprodução que tem como objetivo movimentar a economia e enriquecer ainda mais os que já possuem muito. Entretanto, não seria possível a abolição total do labor, mesmo que as evoluções tecnológicas tendam para a automação e automatização, para Marcuse, ainda assim seria impossível uma total abolição. O que ocorreria era uma mudança na própria organização do trabalho, na qual sobraria mais tempo para o ócio. Reorganizando a produção tendo em vista esses novos valores, se produz somente o necessário para desenvolver as potencialidades humanas. E com a tecnologia herdada da mais repressão não seria mais necessário subjugar outros homens para prolongar o seu prazer.
Pretende-se, no final desse texto que se tenha apresentado uma pequena apresentação do pensamento de Herbert Marcuse que é o desenvolvimento da oposição ao asceticismo, e ainda assim muito longe do hedonismo. É uma axiologia que preza, sobretudo pela liberdade prática. Enfim, terminarei como sugerido pelo próprio Marcuse, como sendo a maneira mais válida de se retratar uma civilização não repressiva; a linguagem da arte.
La vraie civilization... ríest pas dans le gaz, ni dans la vapeur, ni dans les tables tournantes. Elle est dans la diminution des traces du pêché originel
[A verdadeira civilização... não está no gás, no vapor ou nas plataformas giratórias. Está na diminuição dos vestígios do pecado original.]
Là, tout n est qu ordre et beauté,
Luxe, calme, et volupté.
[Aí, tudo é ordem e beleza. Luxo, calma e voluptuosidade.]