Layla 07/01/2020Você já se perdeu alguma vez quando era criança?
É horrível – pelo menos, a minha experiência foi: não saber para onde ir, o que fazer, se é melhor continuar no mesmo lugar ou sair por aí a procurar, tudo isso somado ao terror de se encontrar sozinho no meio de estranhos, do medo de não encontrar quem estava com você, com a incerteza de ser capaz ou forte ou inteligente o bastante para prosseguir a partir dali, de lidar com essa situação.
Você pode até não se recordar de ter passado por isso na infância. Quando mais velhos, podemos deixar esses sentimentos para trás quando perdidos, basta ligar rapidamente um GPS, abrir o Google Maps, pedir informação. Entretanto, por mais que anos tenham se passado, ainda há um tipo de... confusão, um jeito de não se achar ou compreender aonde se está ou queria estar. Ainda podemos nos perder – e não é aquele perder que um mapa pode rotacionar. Ainda podemos sentir que somos aquela criança de outrora, com medo, assustada, impotente, ingênua a alguns males que lhe eram desconhecidos.
Por várias vezes já me senti assim: no meio de uma crise, ao confrontar problemas que não pude prever e que me atropelaram sem aviso, quando não sabia o que executar, como avançar, sem saber o que esperar. Não consigo recordar os motivos que despertaram tal sensação, mas posso apontar qual foi a última vez que me senti desse jeito. Enquanto lia TUDO O QUE DEIXAMOS PARA TRÁS, tive a percepção de ser uma criança novamente. Fiquei frustrada com os protagonistas e suas famílias, não conseguia entender os elos que os conectavam, lia cada linha e parágrafo dos capítulos com a sensação de que todos eles falavam de abelhas, mas na verdade estavam falando de outra coisa. Senti medo, fiquei assustada, impotente, ingênua às grandes e pequenas reviravoltas das páginas. E não, os personagens não são crianças – eles são adultos. Adultos que, cedo ou tarde, se perderam.
E a escrita da Maja é tão boa, detalhista e coerente, que leva o leitor a se perder também.
Conhecemos a história de três pessoas: William, que se passa em 1852; de George, em 2007; e de Tao, em 2098. Os pontos de vistas são intercalados, passado, presente e futuro, William, George e Tao, construções de colméias e descobertas sobre as abelhas, centenas de abelhas que começam a desaparecer e, então, um mundo em que a polinização tem de ser feita por mãos humanas.
Esses pontos de vista diversificados são ricamente construídos, assim como a mente de seus personagens. A autora deu identidade a eles de forma tão genuína e certa que, mesmo se eu pausasse a leitura e depois retomasse, poderia reconhecer quem estava narrando pelo seu modo de pensar, seu modo de ver as coisas.
O que mais me surpreendeu no livro, além do fato de ter me envolvido tão emocionalmente em toda a trama, foi como Lunde interligou essas três pessoas, essas três histórias, todo o destino da humanidade e das abelhas. Foi impressionante e genialmente encaixado. Preciso ressaltar, também, que um dos meus medos quanto a essa leitura, era o fato de se focar tanto em abelhas – não sou lá grande fã delas, muito menos de seus ferrões, e nem me interesso tanto pelo olhar científico de quão importante elas são para todo o mundo. Entretanto, meu receio foi infundado. Há, sim, informações sobre elas o tempo todo, mas é como eu disse anteriormente: você vê os personagens falando e teorizando sobre as abelhas, contudo parece que eles estão falando e teorizando sobre nós, sobre a humanidade.
Misturando distopia com drama, demonstra a convivência dos seres humanos do modo mais particular possível, destrincha os laços familiares e os laços com as abelhas, TUDO QUE DEIXAMOS PARA TRÁS é uma obra grande, e não pelas suas 475 páginas. É grande, pois me vi como uma criança com um novo aprendizado, um aprendizado que pode mudar tudo: assim como a rainha é conectada à operária e com todas as abelhas de uma colméia, todos nós somos conectados. O livro é único, completamente diferente de tudo o que já li, e nenhum outro proporcionou tamanha inquietação como ele. Virei realmente uma criança por causa de sua singularidade, lidei com situações, sensações e questões novas, (re)descobrindo algumas de minhas verdades e vivências.
Também vale dizer que a edição da Morro Branco é incrível: com marcador de página do livro (os leitores agradecem!), páginas amareladas, letras no tamanho ideal para não cansar os olhos, o nome de quem estava narrando o capítulo no final da folha, além da linda capa e os detalhes na contra-capa, o próprio livro parece uma colméia – perigoso e belo, abastado de seres que podem trazer coisas boas e doces para a história, mas que também podem te trazer dor.
Foi um dos melhores livros de 2017 – e me arrisco a dizer que foi um dos melhores da minha vida.
E não se preocupe: os sentimentos de ser uma criança perdida, desaparecem ao terminar a última página, porque, assim como os protagonistas, você vai encontrar – seja a si mesmo, novas perspectivas ou, quem sabe, abelhas. Porque elas nunca mais serão as mesmas para você depois dessa leitura.
(resenha postada no blog GETTUB)