Clara 23/12/2016
Vida longa à nova carne
(Resenha escrita em 12/10/16)
Terminei Luz, o deus do horror algumas horas antes de escrever este texto, e precisei de um tempo para fechar os olhos, respirar fundo e absorver cada nuance, ironia, reflexão e delírio impressos no livro. Trata-se do terceiro volume das Crônicas da Não Existência, antecedido de Putrefação e Zon, o rei do nada, duas obras que esgotaram completamente minha sanidade depois que as terminei, apenas para cuspi-la de volta em meu rosto, recalibrando a consciência de que tudo um dia acaba, de que tudo um dia vira nada. Em Luz, o deus do horror, Andrei não decepciona, despindo-se completamente de quaisquer amarras e convenções que o impedissem de cuspir em nossos rostos e provocar-nos, uma vez mais, e com ainda mais intensidade, acerca da verdade por trás das máscaras da vida comum.
Se é verdade que o divino é a criação mais engenhosa e intrincada do ser humano - aperfeiçoada e lapidada ao longo dos séculos -, também é verdade que os demônios e entidades sobrenaturais maléficas presentes nos antigos mitos desde os tempos imemoriais também o são. Com estes anjos bizarros travamos guerras entre criador e criatura, por dias, anos, séculos, milênios, como um ouroboros mordendo eternamente a própria cauda em um ciclo infindável - o eterno retorno descrito por Nietzsche. Em algum momento, é inevitável que se pergunte: até quando?
Cada um dos contos do livro resgata os instintos e paixões primordiais da alma humana - o medo, a dor, a fome, a vontade, a autopreservação - travestindo-os de monstros grotescos, sanguinolentos e viscerais para, ao fim da trama, rasgar as cortinas e revelá-los como um reflexo putrefato de nós mesmos, nossos próprios demônios e criações, quebrando novamente a quarta parede através da figura de "Aquele que Lê", nós, leitores omissos e observadores passivos diante do show de horrores se desenovelando à nossa frente. O deus do horror possui espelhos no lugar de olhos e, se os olhos são as janelas da alma, as órbitas do horror se alimentam da omissão de cada um de nós.
Em Putrefação, tivemos acesso à decadência do indivíduo na ausência do mito do criador para salvá-lo da morte. Em Zon, questionamos o criador frente à criatura. Luz, por fim, quebra todas as barreiras entre estes dois, ao ponto de que é impossível realmente sabermos quem é criador ou quem é criatura, em um eterno ciclo dialético pelo qual a humanidade se arrasta em patinhas de barata. Luz, o deus do horror é um livro belo em sua assimetria grotesca, em seu choque de realidade niilista e minimalista do qual seus leitores (eu inclusa) jamais conseguirão se esquecer. Parabéns a todos os envolvidos neste trabalho estupendo.