Higor 15/04/2024
"LENDO NOBEL": sobre protagonistas que não protagonizam
Toni Morrison muito me instigou com "Sula", seu segundo livro publicado (e minha primeira leitura da autora), tanto que parti imediatamente para "O olho mais azul", seu livro de estreia. Sim, o mérito principal se deve a escrita da autora, mas eu queria entender melhor o prefácio de "Sula", em que a própria afirma se tratar do único livro com ideia, estrutura e intenções diferentes de toda a sua vasta bibliografia. Com tal informação, a leitura deste livro se deu mais para entender o que ela queria dizer, entender as divergências e, de quebra, torcer para encontrar na história de Pecola aquilo que eu mais gostei no livro anterior, assim como não me aventurar novamente naquilo que mais detestei do núcleo familiar de Sula.
Acontece que, infelizmente, eu encontrei uma versão não polida - ou revisada - de "Sula", pois há, aqui, em "O olho mais azul", o que há de melhor e também de pior em seu segundo livro. A questão de Morrison, ao menos para mim, está na estrutura de sua narrativa, na maneira como ela organiza os fatos, e quem ela escolhe para nos apresentar seu doloroso mundo.
Se em "Sula", a personagem-título demorou diversos capítulos para aparecer, enfim, ao leitor, nossa protagonista da vez, Pecola, já é referenciada logo de cara, assim como seu destino trágico, mas parece que os fatos ocorridos na vida de Cláudia, a narradora, são muito mais interessantes, e o leitor se esquece em diversos momentos quem de fato é a personagem principal do livro.
Explico melhor: dividida em três linhas narrativas principais, a não-linearidade cronológica de "O olho mais azul" se inclina para uma escolha pretensiosamente bem-sucedida (muito bem, diga-se de passagem), mas se perde ao intitular uma protagonista e, sinceramente, não dar a devida atenção, de maneira a deixar o leitor, embora tocado com o terror que assola a pequena Pecola, não conectado por completo ao seu drama, pois ou há uma curiosa cartilha sobre uma família branca e aparentemente perfeita, ou uma narradora, Claudia, uma criança também negra, mas não tão desprezada ou sofrível como a protagonista, que empolgam muito mais.
Acredito que, exceto pela parte final, o pouco que sabemos de Pecola se dá com comentários espaçados do narrador onipresente ou de Cláudia, em uma narrativa apenas expositiva, sem muitos detalhes do porquê ou de como aconteceu a ela. Todos os outros personagens são mais interessantes que Pecola, e digo de Cholly e seu passado angustiante, de como conheceu e se apaixonou por Polly, apesar de sua deficiência em uma sociedade preconceituosa, e como o amor se transformou no ódio, no vício, e principalmente, em algo tão criminoso.
Em contrapartida, enquanto o leitor acompanha o passado e a construção de todos os outros personagens e consegue reconhecer o talento da autora, afinal, ela escreve muito bem, por que Morrison não fez o mesmo justamente com Pecola? Até mesmo Soaphead, um personagem tão pequeno, teve uma construção, tempo de história maior que a própria Pecola, quando claramente é um personagem descartável, tanto que apareceu apenas naquele momento para nunca mais ressurgir.
Eu entendo perfeitamente o período de escrita e publicação de "O olho mais azul", assim como sua importância para a literatura, não só negra, mas da época de uma maneira geral, onde houve uma ruptura no modo de narrar a história, que era a de abordar os dilemas americanos pós Grande Depressão e Guerra Mundial, para se olhar e atentar aos problemas dos negros, além de, principalmente, resgatar a beleza racial há muito perdida. A questão é que eu saio muito frustrado da experiência de ler Toni Morrison.
A frustração ainda tomou proporções maiores com o posfácio da autora, em que ela muito questiona a si e as escolhas tomadas ao livro. Sério, se a própria autora reconhece que errou, e muito, nas escolhas estruturais e narrativas que tomou, por que eu deveria gostar?
Outro exemplo para reforçar meu pensamento: o título, "O olho mais azul", se dá à vontade de Pecola de ter os olhos azuis, olhos de Shirley Temple, e não ser mais feia. A primeira menção a isso está na página 22 e depois é retomado apenas na página 174. Não seria esse o fio condutor de toda a história? O dilema a que a dita protagonista lutaria a cada página, caso tivesse páginas decentes dedicadas a ela?
Inquestionavelmente bem escrito, "O olho mais azul" sofre com decisões catastróficas da autora, reconhecidas anos depois pela própria. Uma grande história sobre temas relevantes e atemporais, como infância negra, contraste entre a vida de brancos e negros, violência doméstica, racismo internalizado, dentre tantos outros, mas que se propõe a elevar uma personagem a status de protagonista, quando todos os outros são, ou quando não há necessidade de elencar apenas uma pessoa, quando se tem um grupo tão diverso e interessante.
Basta de Morrison por enquanto.
Este livro faz parte do projeto "Lendo Nobel".