Bicho metropolitano

Bicho metropolitano Anchieta Mendes




Resenhas - Bicho metropolitano


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Krishnamurti 19/10/2016

ANCHIETA MENDES
ANCHIETA MENDES
Krishnamurti Góes dos Anjos(*)
Imagine; você está em uma livraria e se depara com um livro de contos onde se estampa na capa a silhueta de uma serpente. Abre o volume aleatoriamente, e na página 34 lê o trecho:
“Vicente prosperava no comércio de pedaços de ouro. De casa em casa, de bairro em bairro, satisfeito. O palpitar do coração acelerou, desgovernou, ao ponto de sentir o órgão a sair-lhe pela boca. Marta abriu a porta às palmas. A mulata o recebeu de lábios carnudos, dentes alvos e olhos inebriados de alegria. Por momento achou-a conhecida, vista de algum passado. Mas não disse nada. A mulher o recebeu de sorriso farto, de gestos comedidos e de olhar atento. Para ele fartura, imensidão, mar aberto. Tudo nela refletia carinho, amor, paixão”.
Você certamente, dará um sorriso irônico, de canto de lábios, ante este trecho que promete arrebatamento, fascínio e desejo, fecha o livro e devolve-o à prateleira onde estivera. Resolve passear o olhar na profusão de títulos que se encontra por ali mesmo, mas… não tem como. A curiosidade já o picou ve-ne-no-sa-men-te. Pega o livro novamente e procura com avidez aquela passagem transcrita acima para continuar:
“Agendou mais visitas. Os outros precisavam de maiores e melhores brilhos. Os brincos, cordões, pingentes muito mais sofisticação. Se havia negócio a fazer, o fez de pronto, sem pestanejar. Nessas condições prometeu satisfazer a mulata nos seus caprichos e cobriu-a de ouro, de pedaços pequenos é claro. O amor estava decretado. A paixão afogueava-lhe as entranhas. Com o tempo a mulata abriu-lhe o caminho capaz de torná-lo mundano e mulherengo”.
O livro em questão é “Bicho Metropolitano” de Anchieta Mendes, que a Editora Penalux acaba de editar. Seu autor, que já vai no quarto livro (sendo dois romances e dois de contos), e já participou com algumas histórias curtas em antologias brasileiras reuniu neste volume quatorze novas ficções. Nelas, profetas apocalípticos, tarados, negociantes, padres, assassinos, putas, beatas e gente humilde desfilam em textos de grande carga criativa, onde há também espaço para um lirismo comovente como acontece em “Amor em três dimensões” e “Janela da alma”.
Em todas as narrativas, sentimos a presença forte do narrador e o uso magistral do discurso indireto livre (que unifica a voz narrativa e do protagonista), e estabelece um ponto de vista que deixa claro, em pouquíssimas palavras, o rumo que a narrativa vai configurando. A este propósito o escritor Anderson Fonseca que assina a orelha da obra, muito acertadamente identificou no autor o manejo de uma prosa enxuta, com cortes precisos e descrição econômica. Acrescentamos que outra característica reincidente é a ironia. Neste aspecto o autor positivamente se supera. A ironia a atuar não apenas como figura de estilo, mas também como procedimento estruturante da composição textual e mesmo como matéria ficcional onde o sentido (situacional ou dramático), subjaz precisamente na tensão entre o simples enunciado e suas múltiplas interpretações. O não-dito dizendo mais do que o dito, estratégia genuinamente irônica a funcionar como gume crítico para expor as deficiências e as hipocrisias que se observa nos comportamentos e caráter de suas criaturas. Vide o conto “O dízimo”, exemplar nesse sentido.
O autor não hesita também em lançar mão do humor sarcástico, da agudeza, e mesmo da sátira no tratamento das personagens e situações como o faz em “Velório do outro mundo”. Neste é impossível não deixar de notar semelhanças com o estilo galhofeiro, corrosivo e oblíquo tão nosso conhecido em Machado de Assis. Logo no primeiro parágrafo do conto:
“A mosca traquina e teimosa pousava sempre no nariz do morto. Isso pela tarde, quando trouxeram o caixão e pela noite afora. Sempre a mesma mosca. Somente uma pessoa reparava nesses detalhes: voos rasantes, curtas pernas e língua ávida a chupar partes do nariz do morto. Ângela. Os olhos por trás dos óculos estavam firmes e não perdiam nada daquele trabalho nojento. O trabalho das perninhas, das duas da frente a se esfregarem lépidas. Ângela reparava. Houve momento de esquecer os familiares e os seus piripaques. Estava de olho na mosca. Em alguns minutos achou-se igual ao inseto mundano. Não na exatidão das pousadas sempre no mesmo lugar, e no nariz do morto. Mas sempre presente em velórios, sempre.”.
Observamos ainda que, para além da caricatura e da sátira exibidas em alguns textos, o narrador adota um olhar distanciado e ferinamente crítico olhando os personagens por dentro, porém de maneira impessoal deixando ao leitor um julgamento próprio, até mesmo quando da exposição clara de deslizes morais e mesmo taras que observa na civilização do “Bicho metropolitano” - conto título.
Assim, Mendes segue dramatizando momentos de reflexão, autoexame e descobertas dessa nossa condição humana no teatro que chamamos Sociedade. Uma provocação parece estar implícita nessa obra: Seria a vida uma peça de teatro que nós estreamos quando nascemos e acaba quando dormimos para sempre? A pensar…
“Bicho metropolitano é livro que, para além do prazer que a leitura desperta, marca a presença firme do escritor, a mão do escritor que sabe o que dizer, que põe no texto sua visão de mundo e sobretudo o faz seduzindo o leitor inapelavelmente. Anchieta Mendes, um escritor para estarmos atentos.

P.S. Em tempo; os trechos transcritos no início da resenha estão no conto “O canto do galo”. Uma maravilha de texto, e o desfecho então…
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