Krishnamurti 09/10/2016
HORAS A PINGAR, ESCORRENDO LENTAS...
Por Krishnamurti Góes dos Anjos (*)
Gaston Bachelard filósofo e poeta francês, afirmou que “A lembrança pura não tem data. Tem uma estação. É a estação que constitui a marca fundamental da lembrança (…) A estação abre o mundo, mundos em que cada sonhador vê expandir-se o seu próprio ser”. O livro “As horas” de Alex Andrade, (Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2016, 146p), reúne treze histórias em que a tônica se assenta no tempo psicológico das personagens o que traz ao tempo presente das narrativas, não só uma série de fatos vividos, mas também as marcas emocionais desses fatos que foram armazenados e que vêm à tona independentemente do distanciamento e do tempo transcorrido pois fazem parte do ser no tempo presente. Andrade recria nos textos a experiência humana e nos disponibiliza interioridades a partir de um movimento de autorreflexão questionador e muitas vezes contraditório, onde reflete-se o sentido da vida e da situação em que nos encontramos.
Esse tempo “presente” está sempre associado às fantasias, aos desejos, às crenças, às maneiras de ser, e também, e com que força, ao amor. Ou ao que pensamos equivocadamente, que seja o amor. Interessante notar como essa perspectiva é tratada particularmente em dois contos: “As horas” e “Chuva”. No primeiro sob a ótica masculina, um “amor” que embora pleno de desejos físicos, se inviabiliza pela completa disparidade de percepções, de identificação, de entendimento recíproco, que é a mola mestra do tal sentimento. Como nos engamos quanto a isto de que ao amor, tesão só não basta! Em “A chuva”, a mesma chave sob perspectiva feminina, mas aí com a sutileza do gênero: “ele vai dormir aqui junto de mim, ouvirei o ronronar de seu sono, velarei o seu sonho e beijarei o seu pescoço e lhe falarei coisas que é para que as minhas palavras penetrem no seu subconsciente”. Faces da mesma moeda. São criaturas obcecadas, trancadas em ambientes fechados, a chuva lá fora - sempre a chuva aparece nos contos - quase paranoicas em suas buscas na idealização do outro.
Em outros textos a condução da narrativa se constitui ora por fatos que emergiram da memória, ora por fatos presentes, sem diferenciação clara de planos temporais, já que as lembranças surgem e sofrem continuamente a interferência do tempo presente e de todas as vivências que ele implica. (simultaneidade entre tempo psicológico e o do relógio). A rememoração de fatos passados, muitas vezes súbita e não explicitada, dá às personagens a característica humana da recordação em que à memória se confia o sentido e o rumo (às vezes), de nossas vidas. Disto é exemplo o conto “Tempo”.
Há também uma ficção que merece especial registro, pelo grau de criatividade alcançado, e pela trama bem urdida entre memória e imaginação. Em “Eu não amava os Rolling Stones à toa”, às recordações soma-se o ato da imaginação, a fim de proporcionar uma melhor compreensão da ação passada, prolongá-la voluntariamente (artifício que sempre levamos a efeito a bem do que nos é caro), ou preencher lacunas de esquecimento, clarificando a personalidade em questão.
Mas ao fim e ao cabo da leitura de “As horas”, deparamo-nos com o brilhante conto “Tá vendo o dia lá fora?”. Neste, é narrada a rotina de dona Maria de Lourdes, uma octogenária que reflete sobre sua vida e não se conforma com a rotina e falta de perspectivas. Todavia alimenta esperanças. O escritor Vergílio Ferreira em sua obra “Nitido nulo” chama a atenção para uma perspectiva da existência. A esperança. Diz ele que a “esperança sempre foi para o homem um prazer intenso porque aponta-nos para o futuro. O futuro que está à nossa disposição, nos surge ao mesmo tempo sob uma variedade de formas igualmente risonhas, igualmente possíveis. A ideia de futuro, convenhamos, está prenhe de possibilidades, e é justamente por isso que há mais encanto na esperança do que na posse, no sonho do que na realidade”, mais ainda, acrescentamos nós, na possibilidade que nos abre para a mudança. Vejamos como o conto de Alex Andrade contribui para tal compreensão:
“Dona Maria de Lourdes não queria lembrar do passado, do medo, dos filhos ingratos – setenta e nove anos de nada!
Não era velha, nem idosa, nem cansada.
Foi ao inferno e ao céu no mesmo instante. Estava quase pronta, menos carrancuda, menos pesada. A velha teve sentimentos bons, queria amar. Sua idade não importava. Existia agora.
Deixou de lado a ordem e a coerência, que a conduziam ao abismo”….“e com a ingenuidade de uma criança, olhou para todos os lados e em seguida, para o céu pedindo perdão pelo seu maior pecado, que foi o de não ter vivido.
Aplaudiu de pé a sua conquista. Ergueu a cabeça branca e mesmo sem andar direito invadiu a rua”.
Este é, para lembrar a epígrafe do livro que se abre com uma frase de Clarice Lispector, o terrível dever de ir até o fim de nossas vidas. Com efeito, Alex Andrade tem o que o dizer, e sabe fazê-lo.