Annalisa 29/07/2020Rainha de Katwe
Geeeente, que livro desolador para o coração. É real e triste. É um tapa na cara da sociedade, me senti extremamente podre de alma lendo esse livro, com vergonha de algumas coisas pela qual já reclamei.
O enredo todo acontece como se você estivesse assistindo um documentário sendo baseado na história de Phiona Mutesi, uma criança de rua de uma das mais miseráveis favelas de Uganda: Katwe. É uma leitura que flui fácil, que intriga, que exala e que te derruba emocionalmente.
Phiona seria só mais uma em meio aos milhares de pessoas em condições miseráveis, sem expectativas de futuro, sem expectativa de vida, com seu destino traçado e assinado pela fome e a morte.
Sem condições de frequentar uma escola, sendo perseguida pelo medo do tráfico de mulheres, pelo medo dos estupros, e pelo medo AIDS, mas mesmo assim levantando todos os dias e agradecendo a Deus por mais aquele dia.
Tudo muda quando Robert Katende, um missionário, aparece oferecendo um prato de comida em troca de ensinar xadrez às crianças, mesmo sem sequer saber escrever seu próprio nome Phiona acaba envolvida por esse jogo e apresenta uma capacidade de raciocínio fora do padrão para qualquer pessoa de qualquer classe social, e principalmente para sua pouca idade. E em apenas quatro anos ela conseguiu se classificar para sua primeira Olimpíada de Xadrez com apenas 14 anos, além de ser também a primeira mulher a ganhar o Campeonato Nacional Junior de Xadrez na Uganda. Isso sem acesso a qualquer tipo de livro, sem acesso a qualquer tipo de tecnologia ou sequer um treinamento qualificado, muitas vezes sem se quer um prato de comida ou um gole de água potável, tendo que caminhar todos os dias 5km para ir e outros 5km para voltar. Tudo conquista de sua própria capacidade, determinação e o apoio e incentivo de Robert.
"Comecei a entender que o xadrez é a melhor ferramente para as crianças da favela. [...] Acredito que, quando elas jogam, podem integrar os princípios usados no jogo à suas vidas. O momento em que seu oponente faz uma jogada é como se estivesse colocando um desafio à sua frente, e a questão toda é pensar: "O que posso fazer para vencer esse desafio?" É como os desafios que elas enfrentam todos os dias. Elas precisam pensar também em como vão superá-los. Eu disse a elas que nunca podem entregar o jogo, nunca desistir, até serem postas em xeque-mate. É ai que o xadrez é como a vida. É essa a mágica do jogo."
"O xadrez começou a fazer sentido para Phiona. É um jogo de sobrevivência através de agressão controlada. É sobre encontrar alguma clareza em meio à confusão, uma maneira de organizar o caos ao sempre pensar diversas jogadas antes do perigo".
É uma jornada inacreditável, mas para mim o que mais me chocou é que apesar de todas suas conquistas, de toda sua trajetória durante o livro, nunca houve um reconhecimento real. Ela saiu de Katwe para jogar nas Olimpíadas na Rússia, e por fim, retornou às miseráveis ruas de Katwe. Após ganhar um de seus primeiros Campeonatos, Phiona foi questionada sobre qual seria a primeira coisa que contaria à sua mãe, e ela responde: "Vou perguntar se teremos o que comer amanhã". É desolador.
O livro também faz uma leve apresentação de todas as pessoas ao redor de Phiona, contando um pouquinho de suas trajetórias na vida e de como chegaram até Phiona. O próprio Katende também foi uma criança de rua de Katwe, e entende perfeitamente pelo o que Phiona luta todos os dias.
Em algumas passagens é possível observar os contrastes da sociedade, são crianças que embarcam em um avião e viajam até o outro lado do mapa, sem sequer já ter visto uma garrafinha de água e tendo que ser ensinadas a como abrir. São crianças que se encantam com o funcionamento de uma descarga, que jamais haviam feito três refeições no dia, e nunca haviam sonhado em dormir em uma cama somente para elas, e depois de ver e sentir um mundo novo, elas são destinadas ainda a voltar a realidade precária delas.
"Ela não sabia se a Terra era redonda, Ou plana, Ela não sabia nada sobre o mundo. O mundo lá fora. O mundo além de Katwe. A favela pode parecer interminável em todas as direções, e há poucos pontos de referência para quebrar a interminável montanha de barracos. Tudo na favela é simplesmente "logo ali". E tudo além daquilo é inimaginável."
"Existe uma tolerância teimosa em meio a um lugar miserável como Katwe. Uma teimosia subconsciente de que é preciso seguir em frente. É uma desconexão peculiar entre circunstância e atitude, que cria uma mentalidade unicamente africana. Muitos já alegaram que o africano médio é mais sereno do que o americano médio, é muito disso tem a ver com acesso. Muitos em Katwe não sabem que existe algo melhor pelo o que se esforçar, o que leva a uma estranha sensação de tranquilidade, e que alguns poderiam chamar de letargia. Todos os dias, pessoas como Phiona Mutesi caminham numa linha tênue entre quieta resignação e desesperança, uma linha que precisou ser redesenhada [..]".