CHEIRO DE MOFO

CHEIRO DE MOFO André D´Soares




Resenhas - CHEIRO DE MOFO


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Krishnamurti 15/10/2016

CARTA A UM JOVEM ESCRITOR
Meu prezado André D´Soares. Escrevo-lhe esta cartinha – em forma de resenha – para dar-lhe conta da entrega de seu livro que com muita gentileza me enviastes. Aconteceu de, no dia em que me foi entregue, estar voltando de mais um dia difícil de trabalho. O porteiro do prédio me entrega o envelope no interior do qual, encontro o livro de título sugestivo: “Cheiro de mofo”. E segredo-lhe que os porteiros do meu prédio se habituaram a entregar-me pacotes de livros como quem entrega calmante a um louco alucinado e irremediável. Sento-me ali mesmo no playground e começo a ler.
Admirável sua coragem e sensibilidade em versar temas que fazem parte do cotidiano dos habitantes das chamadas “comunidades” da periferia de São Paulo. Você se apresenta como um observador impiedoso e contundente da realidade urbana. E sensibiliza-nos. Como não se indignar (se é que isso ainda é possível), com o conto “Eu, Rosa e a tal da urbanização”? Relato cru de como certos espaços urbanos são ocupados, e como se vive no que até há pouco tempo, era conhecido como favela, onde subsiste considerável contingente populacional pobre que luta desesperadamente a cada dia, simplesmente para existir. Como não se solidarizar com o personagem de “O condenado”, espécie de revoltado social que, ao tentar impedir um crime, termina encarcerado nas medonhas cadeias desse país? E como não concordar (e com que tristeza concordamos), com a tua visada sobre a questão educacional no Brasil – sempre ela —, ao ler “Universidade Privada”? A questão da seletividade social continua a existir e acaba por reforçar as profundas desigualdades de acesso ao ensino superior.
Veja o círculo vicioso de injustiças que você denuncia: exclusão social – educação – criminalidade. Um círculo que se retroalimenta no Brasil e fede mais do que mofo, fede a coisa podre. Observamos que a maioria dos contos surge espontaneamente, sem artifícios de criação, como se captados em estado rudimentar. Por vezes emergem conflitos inerentes à condição humana ou ditados por circunstâncias adversas. E há também, digno de registro, um ensaio de surreal no conto “Orfanato” no qual a relação amorosa entre o personagem e uma freira, não bastasse o insólito da situação, está mais para a busca do prazer como fuga ao desespero existencial.
Mas não é demais referir que devemos buscar incansavelmente, o polimento no manejo da linguagem. Este vem com empenho, o tempo e a prática. Aquela transparência da prosa na fluência da frase que todo escritor persegue. Pensar a literatura… Isto nos remete a duas questões que agora me ocorrem: como fazer e o por quê fazer?
Como: diríamos que desenvolvendo a capacidade de olhar uma frase e identificar o que é supérfluo, o que pode ser alterado, revisto, expandido ou – especialmente – cortado. É essencial. Causa-nos satisfação ver que a frase encolhe, encaixa-se no lugar, e, por fim, emerge numa forma aperfeiçoada: clara, econômica, bem definida. Mas só se aprende a escrever, escrevendo e lendo. Lendo, sobretudo os clássicos da literatura de maneira analítica, consciente do estilo, da dicção, do modo como as frases foram formadas, como a informação está sendo transmitida, como o escritor estrutura sua trama, criando personagens, empregando detalhes e diálogos dentre outros aspectos igualmente importantes. A coisa só começa a dar certo depois de muito escrever e escrever. O trabalho árduo, a repetição de tentativas e erros, o sucesso e o fracasso e sobretudo, repito, lendo muito.
E por quê nós escritores o fazemos? É pergunta que sempre me faço e continuo a refletir sempre. Nisso lembro-me de muita coisa, a começar pelos meus primeiros passos incertos na literatura há mais de 20 anos. Depois rememoro certo fragmento de texto de Ernesto Sábato, que sempre tenho em mente e repito cá com os meus botões: “… a literatura não é um passatempo nem uma evasão, mas uma maneira – talvez a mais completa e profunda - de examinar a condição humana”. E como uma lembrança puxa outra, não há como deixar de recordar também, as célebres cartas a um jovem poeta escritas por Rainer Maria Rilke em 1903, e endereçadas a um jovem poeta que lhe procurara para que lesse suas produções literárias. A certa altura, escreve ele ao jovem escritor: “Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: Sou mesmo forçado a escrever? Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua hora mais indiferente e anódina, deverá tornar-se o sinal e o testemunho de tal pressão”.
Mas aí, meu jovem amigo (porque você é mesmo muito jovem), há de se ter em mente outras questões igualmente vitais dos dias que correm, e que foram muito bem expressas por um amigo nosso chamado Ruy Espinheira Filho: “Fibra, isto sim é importante, o talento sozinho não resolve. É preciso muito vigor para ser um homem como os outros, batalhando dia a dia pela sobrevivência, e ainda lutar sua luta secreta pelo sonho (ou obsessão, ou loucura, ou que nome possa ter). Uma luta solitária que somos forçados a calar em nós mesmos, pois poucos a compreenderiam. Temos que cumprir o árduo dever cotidiano do homem comum – e quando deveríamos, como os outros, repousar, trabalhamos ainda mais duramente. E quantos fracassos imersos em silêncio desesperado! As raras vitórias como são adulteradas no juízo alheio! Estamos sempre sós, sempre sós”. Esta é, em verdade, a vida do escritor, sobretudo num país como o Brasil. Mas sim, é possível vivê-la se queres trilhar a vereda literária. Pelo que registras na orelha do livro, de que “deseja viver da literatura, mesmo em detrimento do seu próprio estômago”… Já é sinal de disposição consciente.
É a resposta sincera que te posso dar amigo, feita da melhor maneira que pude. Bem-vindo ao time!
Um abraço fraternal do,
Krishnamurti Góes dos Anjos

LIVRO: “Cheiro de mofo” de André D´Soares, Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2016, 112p.
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