spoiler visualizarpowderjinx 27/02/2024
Tão necessário quanto "Lolita"
Opinião sem spoilers:
Aviso: Essa resenha tem a menção das palavras “estupro” e “abuso”, porém não contém nenhuma descrição mínima de tais.***
A história nos apresenta Laura, uma garota que foi sequestrada aos quinze e é mantida em cativeiro num buraco abaixo de uma casa de fazenda. Seu captor, o qual ela chama de Ogro, a manteve presa por cerca de quatro anos, a submetendo a todo tipo de tortura e abusos, tanto física quanto psicologicamente. Em dado momento, Ogro e ela acabam por ter de deixar a casa onde ela era mantida presa, o que dá a Laura a possibilidade de fugir.
Particularmente, achei o livro de um sofrimento constante e sem pausas, a ponto de ser até sufocante para o leitor. E não digo isso de forma positiva. Não é uma leitura que acrescenta algo revolucionário no universo de livros sobre vítimas sobreviventes, e ainda nos entrega um final revoltante e sem nexo. Acredito que, se o propósito do livro era deixar o leitor desconfortável, conseguiu executar muito bem seu objetivo; entretanto não acho que seja algo de se orgulhar, pois tudo parece ter sido feito de maneira desconexa com cenas chocantes colocadas o tempo quase todo, tornando a leitura além de maçante e repetitiva, desnecessariamente violenta.
Tendo diferentes narrativas, transitando entre a primeira e terceira pessoa, o livro tinha tudo para nos mostrar outros pontos de vista e trazer certo alívio do sofrimento da protagonista, entretanto aqui se torna uma completa bagunça entre os capítulos e você não consegue por momento algum entender mais sobre a vida de outros personagens ou se conectar com eles, além de que são capítulos curtos demais, mal permitindo que o leitor respire antes de voltar novamente para as mesmas cenas gráficas e semelhantes; sem contar o fato de que a primeira parte do livro começa com contagem de dias e pouco depois essa contagem para de ser utilizada de uma hora para a outra. Para mim, a autora usou de um método sujo e preguiçoso para trazer impacto para a história, pois sem as descritivas cenas de estupro, creio que o público não se chocaria tanto com o enredo.
Dito isso, sugiro que caso esteja buscando uma leitura chocante sobre casos de pessoas mantidas em cativeiro, leia 3096 dias (de Natascha Kampusch, uma história real vivida pela própria) ou, caso procure ficção, o livro Quarto (Emma Donoghue) é uma boa aposta.
***A partir daqui, a resenha contém spoiler, então leia estando ciente disso:***
A autora pesa a mão na quantidade de cenas gráficas de estupro, o que no fundo da mente, me deixou com uma sensação de estar vendo algum tipo de perversão estranha disfarçada de terror psicológico, pois em praticamente todo capítulo tinha uma bizarra cena de abuso e era descrita de uma forma que, apesar de chocante e incômoda, parecia ter um mínimo fundo de erotismo.
No momento em que Laura saiu do buraco, pois seu sequestrador (chamado de Ogro) quase fora descoberto e precisava fugir dali, honestamente pensei que ali seria a virada de chave na história e Laura tentaria de tudo para escapar. Inicialmente ela não o havia tentado ainda pois as ameaças de seu algoz eram explícitas, o que é compreensível, entretanto ao sair do buraco, o livro tenta nos convencer de que ela nunca tentou nada para escapar pois estava sob ameaça de o Ogro matar sua família. Então, somos obrigados a vê-la ajudar o homem a conseguir mais vítimas e, apesar de isso claramente deixá-la ainda mais traumatizada, temos de nos frustrar vendo ela desconsiderar todas as chances de fuga que já teve por medo de ser morta ou de que ele mate sua família. Incluindo uma em que estava numa lanchonete cheia de pessoas e com policiais à sua frente, mas não disse nada já que ele a ameaçava com uma faca.
Entretanto, o motivo de Laura perde todo o sentido quando, em certo dia que Estevão (o Ogro) está fora de casa, ela se arrisca a fugir, o que nos faz pensar que talvez ela pudesse ter feito isso antes já que, naquele momento, não parecia estar se importando com a ameaça feita. É aí que o leitor se frustra ainda mais, pois bastou que Laura visse seu ex namorado com outra pessoa, e seu pai não acreditasse que era ela ao telefone, para que ela resolvesse voltar de imediato para os braços de seu sequestrador.
Não só isso, mas como resolve que vai tornar-se cúmplice dele ao sequestrar outras garotas para ele (uma delas sendo filha de seu ex namorado), de modo a agora estar ativamente envolvida em seus crimes. É revoltante ver que o final da personagem foi esse quando claramente não era necessário usar deste artifício para terminar a história de forma trágica pois, neste ponto (talvez um pouco antes), deixamos de ter solidariedade e pena da protagonista e migramos para o desgosto ou desprezo.
Esta história é completamente desrespeitosa com vítimas reais de pessoas como o Ogro, já que mostra a protagonista conformada com sua vida, o que é extremamente revoltante para o público visto que é como se dissesse que deveriam também se conformar caso não tenham “ninguém” para quem voltar.
Por fim, a autora tenta justificar o comportamento de Laura com Síndrome de Estocolmo, entretanto isso se torna completamente sem sentido, visto que durante todo o livro Laura não mostra nenhum indício de identificação, carinho ou amor com seu sequestrador, deixando claro a todo momento o quanto o odeia e enoja. Sendo assim, esse motivo dado como forma de justificar o péssimo final e péssima atitude da protagonista é jogado no lixo em questão de instantes.
Por fim, Rô Mierling deixa ao final do livro uma bibliografia de casos reais que a inspiraram a escrever essa história e, eu considero isso uma das coisas mais revoltantes e incômodas deste livro, pois sendo baseado em histórias de sobreviventes, é deveras burro colocar uma personagem que fez tantas péssimas escolhas e que no fim conformou-se com seu destino. Que mensagem de sobrevivência isso nos passa? Que tipo de lição ou reflexão deveríamos tirar dessa leitura? O número de lições e reflexões que podemos tirar desse livro é igual a profundidade dessa história. **Nula**.
P.s: Nesta capa, se usa a frase: A dor da escravidão vivida e contada por Rô Mierling. Acho uma frase bem problemática pois o termo “escravidão” é muito abrangente e creio que pode levar as pessoas a acharem que o livro é de um assunto ao invés do real propósito da obra. Além disso, “vivida e contada” implica que a pessoa já passou por tal experiência, e eu verdadeiramente duvido que a escritora tenha qualquer propriedade para falar sobre tal assunto além de uma leitura rasa de casos semelhantes.