Marcelo Rissi 05/02/2021
Bom Dia, Verônica (Ilana Casoy e Raphael Montes).
Escrita por Ilana Casoy e por Raphael Montes (que adotaram, conjuntamente, o pseudônimo de Andrea Killmore), ?Bom Dia, Verônica? intitula obra que, adiante-se, balanceia doses perfeitas de drama, de suspense, de ação e, sobretudo, de terror.
Para contextualização do enredo, a personagem central, Verônica Torres, é uma escrivã de polícia que, por influência e efeito de diversas circunstâncias de sua vida, foi readaptada à função de secretária numa delegacia de polícia sediada na cidade de São Paulo, especializada em investigações de crimes dolosos contra a vida. À personagem são reservadas, cotidianamente, funções predominantemente burocráticas ? a exemplo de elaboração de tabelas e gráficos estatísticos de crimes por regiões e, ainda, atendimento de telefonemas ?, rotina, porém, que lhe é altamente enfadonha e pedante.
Em um dia comum de serviço, o delegado de polícia titular daquela unidade, Dr. Wilson Carvana, atendeu em sua sala, pessoal e reservadamente, uma mulher que, afirmando-se vítima de um golpe, buscou amparo junto à polícia civil. Verônica desenvolvia suas funções cotidianas ? enfarada, como de hábito ?, momento em que presenciou a mulher em questão deixando, atônita e angustiada, a sala do Dr. Wilson Carvana. Em sequência, para surpresa e perplexidade das pessoas presentes no recinto, a referida mulher, após exclamação de uma frase enigmática, eliminou a própria vida, mediante defenestração.
A autoridade policial ? na pessoa do Dr. Wilson Carvana ?, na iminência de alcançar a aposentadoria por tempo de serviço, não demonstrou predisposição na investigação dos fatos (tanto do crime/golpe de que a mulher fora, em tese, vítima, quanto do subsequente e correlato episódio atinente ao suicídio, potencializado, ao que tudo indica, pela hostilidade e pela indiferença com que a vítima fora atendida na delegacia). Verônica recebeu, então, ordens para ?engavetamento? imediato dos casos, mas, intimamente, não se resignou com o precipitado arquivamento de fatos que, na sua íntima convicção, mereciam maior e mais cuidadosa apuração por parte das autoridades públicas. Em razão disso, expondo-se a riscos incalculáveis ? imprevisíveis até mesmo para ela ?, Verônica iniciou, secretamente, investigação particular a fim de apurar o fato e a autoria daquele crime com tantas incógnitas e que tanto angustiou aquela mulher, culminando, inclusive, em suicídio.
Dividindo-se entre as tarefas habituais do trabalho na delegacia, os afazeres do lar (ela era casada e mãe de dois filhos) e a temerária investigação particular iniciada (em obediência a autoimposto dever de consciência), Verônica, em determinada ocasião, recebeu uma ligação durante o expediente de trabalho. Ao atendê-la, uma mulher, claramente arreceada, manifestou, ao outro lado da linha, interesse em conversar diretamente com Verônica, nome expressamente vocalizado pela misteriosa interlocutora. A referida mulher, principiando assunto confidencial, afirmou-se desconfiada, a partir de motivos que considerava plausíveis, de que seu marido era assassino em série de mulheres.
A conversa, porém, não avançou significativamente naquele momento, pois a interlocutora, temerosa e, por conseguinte, recalcitrante, optou por descontinuar a ligação abruptamente, desligando o telefone. Já era tarde, porém: Verônica, servindo-se das facilidades proporcionadas pelo seu local de trabalho ? uma delegacia de polícia ?, descortinou, por meio de uma bina, o número do telefone a partir do qual a ligação fora efetuada. Preocupada com o teor da revelação iniciada pela misteriosa mulher, Verônica decidiu, novamente por iniciativa e meios próprios, deflagrar investigação ? igualmente secreta ? a fim de reunir maiores informações sobre aquela situação e, se possível, apurar os fatos e a autoria, com a devida responsabilização do infrator (objetivo ao qual ela, destemida, igualmente se aferrou).
A partir de então, Verônica passou a presidir, clandestinamente, duas averiguações, paralelas e simultâneas, sem imaginar, porém, a complexidade e a profundidade das tramas e, sobretudo, os perigos aos quais se expunha. As clandestinas investigações irromperam, de um lado, no universo dos insondáveis crimes praticados em ambientes cibernéticos/virtuais e, de outro, em selvática e intrincada sucessão de ações, cometidas com requintes de atroz crueldade, por agente que, ao que parece, perpetrava seus atos por influxo de manifestações de psicopatia ou, talvez, apenas por efeito de pura maldade.
Não é possível ministrar outros detalhes, avançando nessa sumarização do enredo, sem revelar ?spoilers?. Caberá ao leitor, assim, acompanhando o desenrolar dos fatos, deleitar-se numa ?saborosa? narrativa que, como já afirmado, conjuga drama, suspense, ação e, sobretudo, terror.
?Bom dia, Verônica? é obra que, paralelamente ao enredo principal, oportuniza, subjacentemente, reflexões que transcendem os limites da história objetivamente narrada. O enredo, por exemplo, confere azo a debates quanto à questão da corrupção e do comodismo por vezes presentes em certos setores da administração pública (o que, frise-se, não é regra, mas, de todo modo, consubstancia tema que reclama debate e diálogo aberto, inclusive como parte do processo para construção de uma administração pública de gestão/de resultados e, assim, mais eficiente).
A obra também chama a atenção para a necessidade de cautela nas relações ? não apenas afetivas, mas de qualquer natureza, inclusive negociais ? em ambientes virtuais, campo propício para golpes de diversas naturezas. Afinal, em espaços cibernéticos, as oportunidades para ocultação ou falseamento de identidade e para desaparição sem materialização de vestígios ou rastros afiguram-se mais facilitadas, fazendo de tais locais, por vezes, campos mais vulneráveis à prática de delitos.
A narrativa também abre espaço para debates, infelizmente sempre atuais e necessários, sobre os possíveis efeitos resultantes de traumas de infância (irrecuperáveis, por vezes) e da ausência de estrutura familiar.
Há, ainda, outro ponto ? antecipe-se, digno de elogios ? que merece menção e oportuniza reflexões relevantíssimas. Verônica é retratada como personagem imperfeita. Ela, como qualquer pessoa, possui vícios e virtudes. Qualidades e defeitos. Comete erros e acertos (em casa ou no trabalho). E está tudo bem, afinal. Verônica é um ser humano. É pessoa como qualquer outra. Busca o acerto, mas também está sujeita ao erro, às falhas e às recaídas. Possui fraquezas, vulnerabilidades, incertezas e inseguranças. É, porém, e acima de tudo, uma mulher arrojada, corajosa, destemida e com iniciativa. É livre. É dona da própria vontade. Batalha todos os dias para superação de dilemas internos ? com origem em eventos traumáticos do seu passado ? enquanto tenta, concomitantemente, organizar a vida pessoal (em família e na sua casa) e no trabalho (cuja rotina é suficientemente desgastante, sobretudo por se tratar de ambiente policial).
Num momento de debates atuais e tão necessários sobre a inquestionável pressão e opressão social ? ainda que, por vezes, tácitas ? sobre padrões de beleza e sobre códigos de condutas e de comportamentos duramente impostos às mulheres, o retrato de uma pessoa como Verônica Torres é icônico, servindo de referência como parte do processo de desconstrução de certos paradigmas e estereótipos (por vezes, repetidos e reforçados até mesmo em livros, sobretudo em obras clássicas, como em romances de época). Ponto altamente positivo para a obra neste aspecto.
?Bom dia, Verônica? é produto nacional. Elaborado por autores brasileiros, as situações e as referências são predominantemente focadas no Brasil. Há, a propósito, menções às cidades de São Paulo (com incontáveis alusões às ruas da capital) e de Embu das Artes, apontamentos alusivos a regiões do país (com menções ao norte e ao nordeste), citações relativas à cultura indígena e assim por diante, características que aproximam o leitor da narrativa, tornando-a mais ?saborosa? e instigante.
A obra é desenvolvida a partir de linguagem simples, fluida e bem escrita. Não há, em ?Bom dia, Verônica?, excessos de erudição. Os autores primaram, sobretudo na formulação dos diálogos, pela adoção da linguagem típica do cotidiano, com as suas usuais gírias, interjeições e informalidades. Esse é outro fator que conferiu um aspecto mais realista e atual à narrativa, tornando ainda mais prazerosa essa hipnótica e resfolegante viagem literária.
Há, porém, algumas pequenas ressalvas. Penso que a obra é um pouco deficitária na descrição e no aprofundamento de certos personagens e situações, do passado e do presente (considerando a linha do tempo da narrativa). Apenas para citar um exemplo: pouco ? ou praticamente nada ? é esclarecido sobre a conversa entabulada pela mulher que, ao início da narrativa, dialogou com o Dr. Wilson Carvana (e que, em sequência, cometeu suicídio). A obra é também escassa quanto aos detalhes dos crimes praticados pelo golpista (posteriormente acossado por Verônica Torres) contra a referida mulher. A narrativa, é certo, descreveu o essencial para a compreensão do enredo neste aspecto (e em todos os demais), mas creio que os autores poderiam ter reservado maior espaço para desenvolvimento, com mais vagar, de outros detalhes, tais como o passado daquela mulher, a relação que ela iniciou, estabeleceu e desenvolveu com o criminoso que lhe golpeou e, especialmente, a forma como ela foi envolvida em seu ardil, com descrição mais minuciosa de todo esse processo.
Também merece destaque, na linha da ressalva acima exposta, o fato de que o personagem Brandão (relacionado à segunda ?investigação? de Verônica) detém personalidade complexa e comportamento ambivalente ? quiçá bipolar ?, além de traços evidentes de psicopatia, de modo que, na minha leitura e intepretação, seus aspectos psicológicos, tão intrincados, mereciam maior aprofundamento. A narrativa, como já afirmado, descreveu o essencial para a compreensão dos motivos que moldaram a personalidade de Brandão ? levando-o a cometer os atos que sistematicamente praticava ?, mas creio que, tratando-se de personagem com características tão marcantes, incisivas, peculiares e, sobretudo, paradoxais, a narrativa oportunizava ? ou, até mesmo, reclamava ? maior minúcia quanto aos aspectos psicológicos desse personagem.
De todo modo, os pontos acima relacionados consubstanciam apenas pequenos detalhes que, evidentemente, não interferem na compreensão da trama e, sobretudo, na indisputável qualidade da obra (qualidade, aliás, tão inconteste, que rendeu a ?Bom Dia, Verônica?, merecidamente, adaptação às telas, na forma de seriado).
O fim da obra é enigmático. É um suspense que aguça a curiosidade e o imaginário do leitor e, principalmente, deixa canal aberto para a continuação do enredo, já confirmada, aliás, pelos autores. Assim esperamos, ansiosamente.
Recomendo, com ênfase e entusiasmo, a leitura de ?Bom dia, Verônica?.