Érika 26/12/2021Não está no centro do ciclo à toa“Ensaios sobre o mundo do crime” é o 4º livro do ciclo “Contos de Kolimá”, de Varlam Chalámov, uma das obras mais importantes da chamada literatura do Gulag. É, também, a menor obra do ciclo e a única composta de textos de não-ficção. Por que Chalámov escolheu esse formato e esse ponto na coletânea para se debruçar sobre o tema dos criminosos convictos (blatares)?
Uma possível resposta para essa pergunta talvez seja a importância que ele confere ao fenômeno dos blatares: para o autor, eles são o elemento corruptor dos campos de trabalho, o centro de onde flui toda a maldade, que contamina de detentos a médicos a autoridades. Acabar com a romantização do mundo do crime na literatura é uma das únicas “causas” que Chalámov parece abraçar em sua obra. Se, para retratar o resto, ele usa o conto, a ficção, que, por sua natureza, sempre deixa uma margem mais aberta para a interpretação do leitor, ele interdita ao leitor essa margem quando o assunto são os blatares: sobre eles, afirma categoricamente — não são humanos. E põe-se a provar seu ponto em textos expositivos-argumentativos.
O primeiro ensaio critica a retratação do mundo do crime na literatura, propondo o problema que Chalámov quer combater. Em seguida, em “Sangue vigarista”, ele explica o que são os blatares, como se formam, como se comportam, o que os diferencia do criminoso comum — que pode até ser reincidente ou criminoso habitual, mas não se submete à “lei” do mundo do crime. Esses temas são expandidos em “A mulher no mundo do crime”, “A ração carcerária” e “A guerra das cadelas”, em que o autor explora, comprova e repisa o ponto da desumanidade dos blatares, desfazendo mitos como o código de honra dos bandidos, a proteção oferecida a médicos ou o amor deles pela mãe, apontando que, nas suas batalhas, não há lados bons, e tentando compreender o seu mundo. Em seguida, porém, vêm três ensaios cujo tema parece contradizer a afirmação de que os blatares não são humanos, pois focam no senso estético do grupo e em suas formas de expressão artística. Para Chalámov, a arte é, de certa forma, um sinal de humanidade, e ele admite a contragosto sua presença nos blatares – ainda que de uma arte reduzida, simplista, dramática e “falsa”. Chega a mencionar por nome e com certo respeito dois blatares que conheceu que até gostavam de ler. Esses resquícios de senso estético parecem deixa-lo perplexo, mas não elide a convicção no axioma anteriormente citado. Por isso, o autor vê com ceticismo ideias de reeducação e “reforja” pelo trabalho, especialmente porque, segundo ele, blatares nunca trabalham, isso contraria a lei da bandidagem.
O livro tem como posfácio com dois textos que não fazem parte do ciclo original, o ensaio “O que vi e compreendi no campo de trabalho”, uma lista de 46 itens que sintetizam de forma sucinta e perfeita os pensamentos espalhados por todo o ciclo, retratados nos contos, e uma carta de Chalámov a Soljenítsin, expressando suas opiniões sobre a novela do outro, “Um dia na vida de Ivan Deníssovitch”, a primeira obra da literatura do Gulag a ser publicada na URSS, em 1962. Entre elogios e discordâncias, Chalámov repisa e expande alguns axiomas expostos na lista.
Vê-se que o livro não está no centro do ciclo à toa. Parece-me que, lendo tudo na sequência correta, o leitor se beneficia da experiência que o autor pretendia proporcionar, narrando, primeiro, dezenas de casos dos que ajudaram a formar suas convicções sobre a vida no campo, e só então expondo essas convicções em forma textual e inequívoca. Assim, o leitor vê de onde o autor está partindo para chegar àquelas convicções. Só de ter lido o livro 1 inteiro e parte do 2, já consigo entender posicionamentos que, em uma leitura crua, pareceriam muito duros.
Um último ponto a ressaltar é a discrepância entre a escrita literária de Chalámov e sua não-ficção. Curiosamente, os textos de não-ficção, mesmo bons, são tecnicamente inferiores à prosa literária dele. Ele gira um pouco em torno de algumas ideias e alguns de seus arremates soam como conclusões de redação. Assim, mesmo tratando de fatos graficamente mais pesados que muitos dos contos, o livro pôde ser lido mais rapidamente, por não provocar um impacto emocional tão forte quanto os contos. Porém, continua sendo um livro excelente e crucial.