Alle_Marques 24/12/2023
“... temos agora as ferramentas que precisamos para realmente nos entenderem, como nós, e como somos.”
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“Os danos que nos fizeram durante a nossa infância não podem ser desfeitos, uma vez que não podemos mudar nada no nosso passado. Podemos, no entanto, mudar a nós próprios. Podemos reparar a nós mesmos e ganhar a nossa integridade perdida escolhendo olhar mais de perto para o conhecimento que está armazenado dentro de nossos corpos e trazendo esse conhecimento mais perto de nossa consciência.”
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Já conhecia o trabalho da Alice Miller por outros meios, pela voz de outras pessoas, então nada do que foi dito por ela aqui foi uma grande surpresa, um grande choque, para mim.
Minha “chave virou” a bem mais de um ano graças ao trabalho indispensável de estudioso, criadores de conteúdos, pedagogos e educadores parentais atuais, todos defensores ávidos da infância que compartilham seus conhecimentos de graça pela internet, principalmente pelo Instagram (especialmente Maya Eigenmann, Tadeu Franca e a Flavia Pereira). É o trabalho importantíssimos dessas pessoas que está ajudando a conscientizar e abrir os olhos dos leigos – como eu já fui um dia – sobre o que realmente é a violência, sobretudo contra a criança e adolescente, suas muitas facetas, como e o porquê dela acontecer, o quão prejudicial ela é nos primeiros anos de vida e como isso influencia na vida de uma pessoa pelo resto dela, além é claro de já ter ido atrás de outros especialistas no tema e ter estudado e pesquisado sobre o assunto por conta própria diversas vezes, portanto, será bem difícil resenhar esse livro apenas pelo que ele é, pelo que aparece nele e sem abordar assuntos e discussões de forma diferente da qual Miller traz aqui, mas como meu objetivo desde o início é o aprendizado e desenvolvimento pessoal através da compreensão de seu trabalho e do trabalho de semelhantes – e imagino que deveria ser o objetivo de todos –, acaba que não é nada que prejudique a leitura ou escrita da resenha, pelo contrário, o conhecimento extra me ajudou a compreender o livro bem mais do que seria possível se tivesse apenas caído de paraquedas nele, e quanto maior a compreensão de uma obra, mais completa e objetiva é sua forma de se expressar sobre ela.
Por experiência pessoal, acredito que a internet e o trabalho preciso dessas pessoas que citei anteriormente seja uma boa base, uma ótima porta de entrada para esse mundo, um bom início para quem está começando a trilhar esse caminho, quem está em busca de uma melhor compreensão sobre si mesmo, sobre como a infância “funciona”, o desenvolvimento humano, sobre como o cérebro funciona, muda, se adapta e é prejudicado pela educação tradicional – e por “tradicional” leia-se “violenta, desrespeitosa e desatualizada” –, mas não é por causa do trabalho admirável dessas pessoas que o estudo do tema por conta própria seja dispensável, e é aí que o trabalho de Alice Miller e outros profissionais entram em cena.
O que Alice faz aqui é estender o assunto, se aprofundar nele, é abordar as situações por diversos ângulos, através de diversos exemplos e explicações, ela não olha só para a criança carente de conexão, mas também para o adulto que um dia também foi uma criança desamparado, ela nos ajuda a enxerga a realidade por trás da educação tradicional e a compreendermos a violência normalizada nela, ela mostra os danos a longo prazo do adultismo e nos ajuda compreender mais claramente os diversos prejuízos causados nas crianças pela ignorância e egoísmo dos adultos, prejuízos esses que seguem essas crianças pela vida toda, se a infância é marcada por negligencia, isolamento, castigos, punições, mentiras, humilhações, violências, autoritarismo, abuso de poder, falta de apego seguro, falta de afeto ou contato físico, desdém e desrespeito, então, nela está a base para comportamentos prejudiciais, inconsequentes ou desafiadores, seja na própria infância, na adolescência ou vida adulta, e nela está a chave para compreender traumas e tratar deles, pois ao contrário do que muitos imaginam, nem todo trauma é óbvio, inesquecível e pode ter suas causas identificadas facilmente, muitos deles são discretos, silenciosos e sutis, mas que estão lá, você pode não se lembrar, mas seu corpo se lembra e manifesta isso na forma de ansiedade, insegurança, imunidade baixa, síndrome do pânico, baixa autoestima, depressão, fobia social, narcisismo, falta de empatia, comportamentos violentos, explosões de raiva, irritabilidade, dificuldade em assumir erros, culpas e responsabilidades, dificuldade em se relacionar e confiar nas pessoas, perfeccionismo, autodepreciação, predisposição a vícios, mecanismos de defesa despertados por qualquer motivo, pensamentos intrusivos, sensação de que algo ruim irá acontecer com frequência, achar que não merece ser feliz, dificuldade de se expressar ou se autorregular, medo dos julgamentos alheios e etc, como a ciência já vem provando a décadas, comportamentos e traumas são causados diretamente pelo falho relacionamento da criança com seus adultos cuidadores, especialmente em seus primeiros anos de vida, e que, muitas vezes, fazem delas adultos que prejudicarão crianças como elas próprias foram prejudicadas um dia, logo, repetirão o ciclo, mesmo sem noção alguma do que fazem.
O trabalho de Alice Miller é cheio de comprovações cientificas, é didático, mas acessível, é sólido e coerente do início ao fim, é para quem está buscando outras formas de educar os que ainda são crianças atualmente, é para quem está buscando acolher e entender as crianças que hoje em dia já são adultos ou idosos, é para quem quer compreender e se conectar melhor com os filhos e, principalmente, para quem quer quebrar o ciclo da educação tradicional que tanto prejudica nossos pequenos e fez mal para as crianças que um dia cada um de nós fomos, funciona tanto para quem já tem filhos, está se preparando para ter ou participa ativamente na educação de crianças ou adolescentes quanto para quem – assim como eu – (ainda) não tem, mas está em busca do desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal, do autoconhecimento, autocompreensão e autorregulação, para quem busca ser uma pessoa mais consciente, empática, sensata e racional, é para quem está tentando entender a si mesmo e, acima de tudo, para quem busca identificar, compreender e cuidar dos próprios traumas, comportamentos, formas de pensar e agir, e por isso posso dizer com propriedade, não é necessário ter filhos ou ao menos conviver com crianças para entender como elas funcionam, pois, somos todos humanos e já fomos todos crianças um dia, logo, é sobre compreendermos e termos empatia pela criança e adolescente que um dia fomos, porque só assim compreenderemos a aceitaremos os adultos que nos tornamos.
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“Apenas uma criança precisa (e absolutamente precisa) amor incondicional. Devemos dar às crianças que nos são confiadas. Devemos ser capazes de amá-los e aceitá-los o que quer que façam, não só quando sorriem encantadoramente, mas também quando choram e gritam.”
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Há quem diga que não é necessário estudar para educar, que quem faz isso é “nutella”, “moderninhos mimizentos” e vão ver as consequências no futuro, que vão criar uma geração de “reizinhos” e “mimados”, uma geração “respondona”, que não pode ouvir um “não” e “monta” nos pais, que crianças tem que aprender “na marra”, que precisam de ”pulso firme”, autoridade, castigos, consequências, punições e apanhar de vez em quando para “aprender” ou “ser forte”, eles vão dizer que dá para criar crianças somente através da intuição, seguindo exatamente o que os pais fizeram com elas e que, na cabeça delas, funcionou muito bem, mas se você perguntar para essas pessoas como o cérebro humano funciona, elas não vão saber responder, se você pergunta como o cérebro de uma criança ou adolescente funciona, elas vão saber menos ainda, se você pergunta como acontece o desenvolvimento infantil ou o que acontece no cérebro de uma criança quando gritam com ela, ela apanha como punição por algo que fez, é censurada, deixada sozinha, posta de castigo, é reprendida, ameaçada, tratada pelos pais com grosseria, estupidez, frieza ou obrigada por eles a fazer algo contra sua vontade, elas não vão conseguir apontar nenhuma base cientifica sólida para comprovar o que disserem.
Estamos diante de pessoas tão ferida por dentro, mas tão feridas, que elas não conseguem simplesmente ver uma criança sendo tratada com respeito sem achar isso um absurdo, pessoas tão cheias de traumas e cicatrizes emocionais que diante da primeira oportunidade exclama logo um “apanhei e sobrevive” sem nem se dar conta que a infância não é, ou não deveria ser, algo para SOBREVIVER – infância deveria ser bom, e não se sobrevive a coisas boas, fora que, sobreviveu? Tá, mas a que custo? Isso não faz sentido –, acham que não tem nenhum grande trauma, nenhum grande dano psicológico, mas não entendem que DEFENDER a violência contra crianças com o afinco que eles defendem já é prova mais do que suficiente que isso não é verdade, até porque, que tipo de pessoa “saudável emocionalmente” é capaz de defender a violência contra CRIANCAS? Isso, por si só, já é uma grande contradição.
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“É precisamente porque os sentimentos de uma criança são tão fortes que não podem ser reprimidos sem consequências sérias. Quanto mais forte um prisioneiro é, mais espessa as paredes da prisão têm que ser, e, infelizmente, estas paredes também impede ou impedir completamente o crescimento emocional posterior.”
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2° Livro de 2023, 2ª Resenha de 2023
Desafio Skoob 2023