Paulo 19/12/2019
Já disse na resenha de A Maldição do Lobisomem o quanto eu gosto de como o autor explora toda a violência e selvageria do mito do lobisomem. Ao mesmo tempo a escrita consegue ser elegante e te passar uma boa compreensão sobre a narrativa que está sendo contada. Sem querer ser um ufanista bobo, Crônicas da Lua Cheia, do Clecius e Lobo de Rua, da Jana P. Bianchi são minhas histórias favoritas atualmente que trabalham com este mito. Em A Ascensão do Alfa, Clecius dá um passo atrás para explicar o surgimento de um personagem importante em seu outro livro, Maioral. E ele faz isso de uma maneira bem sutil.
Sétimo é um homem impulsivo, apaixonado, intempestivo. Um típico sujeito dos pampas. A narrativa se passa no século XIX durante os anos da Revolução Farroupilha, quando o Rio Grande do Sul buscava sua independência, seguindo o exemplo da Cisplatina, que havia se transformado no Uruguai. Dentro desse cenário explosivo, Sétimo se apaixona pela jovem Jennifer, uma alemã imigrante que veio com sua família para o Brasil. Mas, as dificuldades impostas pela revolução vai separar os dois e obrigar a família de Sétimo, outrora com mais recursos, necessitando tocar o gado para ganhar a vida. Isso os coloca em uma rota de colisão com uma alcateia de lobisomens próxima que estava aterrorizando a região. Quando Sétimo e seu pai acabam esbarrando com os homens que formam a alcateia, uma tragédia acaba se abatendo sobre eles. Após a tragédia. Sétimo fica sedento por vingança e não vai parar por nada antes de conseguir seu objetivo.
A escrita de Clecius continua bem acima da média. Gosto demais de como ele consegue brincar com as palavras, formando orações que ora soam elegantes, ora beiram a ironia. Algo simples como dizer o que um personagem está fazendo ganha outros contornos com as nomenclaturas que ele dá a eles: "Jennifer", "a dama dos olhos lilás", "a bela que encanta os ventos", "aquela que encanta minha vida". O autor parece que usa as palavras como marionetes fazendo os seus caprichos. Os parágrafos dançam como nenúfares e suas belas flores. A maneira como ele imposta suas frases combina com o contexto da época dando a impressão de estarmos lendo algum romance do período vitoriano. Mas, é preciso apontar também que ao mesmo tempo em que a escrita é um ponto forte do romance, é também o seu calcanhar de Aquiles. É preciso tomar cuidado com o excesso de floreamento nas descrições, porque pode acarretar em uma distração sobre o que realmente se deseja colocar naquela cena. Em alguns momentos da narrativa, a escrita acaba ofuscando a cena em si. Uma boa escrita ajuda e muito na parte do entretenimento. Mas, ela precisa ter um propósito que é o de avançar a história e deslindar o que se deseja ali naquele momento.
Mas, não pensem que a escrita é apenas bonita. O autor consegue entregar algumas cenas de ação e violência bem grotescas. Afinal, uma flor é linda, mas ela é uma armadilha para pegar insetos. Quanto mais bela, mais eficiente. E nesse sentido alguns momentos são incríveis como a emboscada feita pelos membros da alcateia aos gaúchos e mais tarde o combate singular. O autor consegue imprimir a emoção certa no momento adequada.
O leitor que se encantou com A Maldição do Lobisomem conhece mais detalhes sobre como funciona o mito do lobisomem nesse mundo. O autor expande um pouco a mitologia revelando alguns detalhes como a existência de caçadores de lobisomens e de como estes imaginam que estes seres teriam surgido. Não há nenhuma informação absoluta e incontestável porque acredito que o próprio autor não tenha chegado na versão definitiva daquilo que deseja entregar. Mas, é uma boa para atiçar os leitores com informações que podem ou não ser precisas. Afinal, nunca sabemos ao certo quando um mito é apenas um mito de quando um mito é baseado em histórias reais. Essa brincadeira com a informação é bastante eficiente. Achei que o autor poderia ter brincado um pouco mais comentando sobre rumores da existência de outras alcateias espalhadas pelo Brasil. A história acabou contida demais na vendetta de Sétimo.
Por outro lado, há toda uma riqueza de detalhes sobre parte da história do Rio Grande do Sul no século XIX. Demonstra um pouco de como o autor pesquisou elementos históricos nos quais calcar os seus personagens. Eles são verossímeis dentro do cenário criado. Há a inserção do sobrenatural, mas é mescla do real com o ficcional é tão boa que isso acaba dando mais realismo à coisa. E não pensem vocês que caçar lobisomens é algum tipo de episódio da série de TV Supernatural. Eles são realmente difíceis de serem mortos. Alguém matá-los é um feito e tanto. Mas, voltando aos elementos históricos, eles servem como propulsores para que as ações ocorram. A emboscada jamais teria acontecido se a família de Sétimo não tivesse sofrido com os rigores e a violência feita pelos revoltosos. Só tenho um pequeno problema com isso: algumas vezes o autor gasta páginas demais para destrinchar acontecimentos e desenvolvimentos da revolução que em nada contribuem para a sua narrativa. As informações precisam ter objetivo. Se uma determinada batalha da revolução afetou de alguma forma um personagem, ela precisa ser descrita. Caso contrário, é apenas informação que não serve ao todo. Por essa razão, senti que o romance tem um pouco de barriga em alguns trechos, principalmente em sua metade. Durante o primeiro terço da história não há problema porque estamos localizando os personagens dentro de um mundo. A partir do meio, a narrativa precisa focar nos personagens a menos que esta tenha importância para aquilo que o autor deseja entregar.
Confesso ter curtido mais os capítulos que se centram na alcateia e na dinâmica dos personagens que a formam. Como Julio é um lobisomem gigante que deseja tomar a posição de alfa do atual líder. Ele enxerga nos seres humanos apenas o seu repasto de todos os dias. Ao mesmo tempo em que é violento, consegue ser esperto e ardiloso. Já Tibério é um pobre diabo meio tonto, porém útil quando necessário. É o elo fraco do grupo. Raul é o beta, mas não deseja de nenhuma forma ser o principal. É centrado e focado e entende que Julio é uma possível ameaça ao bem-estar da alcateia. Já o líder é um homem sábio e muito vivido. Conhece a natureza de homens e lobos e se arrepende um pouco de ter colocado Julio em sua alcateia. Se preocupa se precisará tomar uma decisão que não o agradará. Toda a dinâmica é tensa e mostra as pequenas engrenagens da mente de todos do grupo se movendo lentamente.
A Ascensão do Alfa é um prequel competente que reforça as bases criadas no primeiro livro. Aumenta parte da mitologia acrescentando alguns detalhes que vão levantar as sobrancelhas dos leitores. O mais legal é que o autor criou possibilidades para ele escrever histórias adiante ou atrás em sua linha temporal. Eu certamente leria uma narrativa com lobos atuando durante o período de Jesus Cristo na Galileia ou até no presente com as consequências do primeiro livro. Se podemos fazer uma brincadeira, é quase como se o autor criasse linhas para fazer seu próprio Assassin's Creed só que com lobos.
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