Krishnamurti 08/01/2017
O VENDEDOR DE CHUVA, UM ROMANCE DIABÓLICO DE FRED VIDAL
A corrente literária denominada Realismo fantástico ou mágico, é considerada uma característica própria da literatura latino-americana. Sua principal particularidade é fundir o universo mágico da experiência sobrenatural ou fantástica à realidade, mostrando elementos irreais ou estranhos como algo fundido ao corriqueiro, o habitual, de forma intuitiva, sem maiores explicações. Estão catalogadas nessa vertente as obras de grandes escritores continentais como Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortázar, Alejo Carpentier e Jorge Luis Borges. No Brasil os nomes que logo nos vêm à lembrança de maneira mais imediata, são os de Murilo Rubião e J.J. Veiga.
Aqui, agora, surge “O vendedor de chuva”, romance de estreia de Fred Vidal editado pela Penalux, que envereda a seu modo por tal vertente. A partir de uma chacina praticada por cinco homens em um pequeno barraco de um ambiente rural e que ceifa a vida de praticamente uma família inteira. O pai é morto à bala, a mãe e duas filhas são brutalmente estupradas e assassinadas e finalmente o pequeno casebre acaba incendiado com todos em seu interior. Entretanto um membro da família, o filho menor, escapa e se transforma no anjo vingador que retorna anos depois para fazer “justiça”.
A história se desdobra em capítulos que se alternam entre a sucessão de vinganças contra os criminosos (com requintes de crueldade), e a vida sofrida no povoado de Taboquinhas que padece de falta de chuva há mais de três anos. Situação esta muito real e nada fantástica, dos sertões brasileiros: muito comum muito aceita pela nossa bela resignação religiosa de padre e igreja:
“O tempo vai se passando. Devagar e constante, devagar e silencioso como um tumor, ele tudo abarca e tudo consome. Talvez as próprias horas não consigam se mover debaixo do sol ardente. Este começa a trabalhar bem cedo, muito antes do seu expediente, e trespassa as horas mergulhadas em modorra. Um dia vale por dois em duração. Quanto mais a demora, mais distante os sinais de mudança. Não se vê lampejo de esperança no rosto maltratado dos moradores. Taciturnos, chegam às portas de suas casas e elevam o olhar abatido ao céu. Nada de nuvem, tudo claro. Os olhos parados, refletindo a claridade, estão negros por dentro, vendados, cegados. Incapazes de verter lágrima, tal a estiagem.
Assim desconsoladas, algumas famílias, como bandos de aves, partem em arribação. É preciso viver, acima de tudo, e viver nestas terras é custoso. Abandonam suas casas, seus pequenos cercados, suas criações, seu passado, seu presente”. Estão no “cu do mundo”. P. 90/91.
A prosa de Fred Vidal tem o colorido brasileiro (com o vermelho sangue literalmente, aparecendo em primeiro plano), que recorre à oralidade sertaneja, seja captando o seu falar, seja reproduzindo crendices, ditos e máximas populares. O enredo medeia entre a fantasia alegórica e o terror puro e simples inspirado por vinganças macabras com direito a tiroteios, pancadarias, estrangulamentos, facadas, amputações e como não poderia faltar, estrupos. Violência, vingança, violência tal é o ciclo que vai se fechando na obra de conseqüências ficcionais múltiplas. Aí o redimensionamento do tema, a alegoria - difícil distinguir em algumas passagens se as vozes vêm dos mortos ou dos vivos, porque todos parecem almas penadas, sombras.
“De fato é uma assombração. Aquilo não é homem, mas um fantasma. Lembra-se de ter matado aquele que ali estava. Sim, matara-o há muito. E ele agora voltava para espantá-lo”. P. 72.
O absurdo não fica explicado, mas sempre haverá duas miradas, e no caso específico dessa obra, a primeira é: a de que o elemento extraordinário (sede de vingança confundindo as figuras de Orozino sobrevivente da chacina com a do diabo e seus poderes transcendentes), não se limita apenas a uma experiência de leitura, mas assume função crítica dada as circunstâncias em que acontece. É artifício para tratar nossa realidade brutal, pois ao criar a sensação de estranhamento que o exagero das situações provoca no leitor, leva-o a descobrir aquilo que embora à frente de seus olhos não repara. O exagero acaba por induzir-nos a ultrapassar o nível ingênuo da leitura. A segunda mirada, é o obvio: sempre justificamos o “olho por olho, dente por dente” seja lá como for, inclusive cometendo novas barbaridades.
“O vendedor de chuva” é a besta que em nós habita (com seus laivos de grandiosidade / e até controlar a natureza), que acaba por derrubar nossa dignidade na medida em que pelas vias da violência desenfreada nos retrocede à barbárie. E nos vem à mente as recentes chacinas nos presídios de Roraima e Manaus a esfregar-nos na cara quão próximos estamos da barbárie. Orozino reproduz de certa forma o mito de Mefistófeles aquele personagem que é uma das encarnações do mal na captura de almas inocentes através da sedução e encanto, claro está, em pacto com o demônio que o exorta até o fim:
“– Ara, home! Vosmecê já pensou numa coisa dessa? Pois atente: se a água passa a sê moeda, quê será de vosmecê, com competença pra mandar chover e mandar secar? Vosmecê há de sê carregado nos braço, adorado, vai dominar o mundo, ninguém vai ousar lhe resistir! Pese, home, calcule! Vão lhe aclamar rei!”. P. 209.
Os leitores mais observadores hão de notar logo na abertura da obra a epígrafe que nos antecipa o supra-real transfigurado em absurdo lógico. O versículo bíblico tirado do Gênesis 3, 17b, diz: “A terra sofrerá por sua causa”. Uma relação dialética com o texto de Vidal onde a força da sugestão acaba por se impor como realidade a fascinar o leitor.
Livro: O vendedor de chuva” – Romance de Fred Vidal. Editora Penalux, Guaratinguetá – SP, 2016, 214p.