Hector 02/03/2023
Um livro que chega depois do fracasso
O País da Canela, do colombiano William Ospina, é mais uma possibilidade aberta pelo excelente trabalho que a editora mundaréu realiza em sua coleção Nosotros. Este livro é o segundo de uma trilogia, a qual se inicia com o livro Ursúa e termina com o livro La serpiente si nojos, ambos ainda sem tradução no Brasil.
Encontramos, nessa obra, uma espécie de carta-relato de um participante de expedições colonizadoras espanholas em terras que se tornariam posteriormente a Colômbia. Os relatos, construídos narrativamente como uma unidade, projetam-se quase como um romance histórico. O hibridismo ou ambiguidade da estrutura textual não é nenhum problema, uma vez que é carregada pela grande capacidade narrativa de Ospina e por escolhas que, a meu ver, sustentam o enredo. Essa ambiguidade parece ser um caminho literário perseguido pelo autor em vários sentidos. A expressão da consciência do narrador-personagem é construída a partir dessa ideia, na medida em que ele próprio se declara filho de mãe indígena e pai europeu filho de mouros, ponto de partida de uma tensão histórica tradicionalmente compreendida como uma relação de dois polos antagônicos que se posicionam em uma dicotomia colonizadores-colonizados, formatando uma gangorra equilibrada e desequilibrada pela violência. Partir do ponto de vista do “entrelugar” de um “mestizo” pode ser recurso potente na exata medida da ambiguidade que tal categoria amplíssima carrega.
A crítica à dominação espanhola em O País da Canela se dá, portanto, não como uma descrição linear e direta do que poderíamos designar “os horrores da colonização”, mas sim como um embate entre visões de mundo que possuem coerências e incoerências internas. Em outras palavras, Ospina prefere apresentar a questão em termos mais analíticos que descritivos (embora seus méritos descritivos sejam muitos), em uma operação na qual a literatura capitania a jornada, mais que a história, observando os lugares que esta não consegue chegar. Sua condenação do colonialismo vem, a meu ver, pela escolha de não haver uma grande redenção do personagem, que permanece ambíguo até o fim, pensando a ambiguidade dentro da proposta que apresento mais à frente. Construímos como expectativa (até mesmo inconsciente) que sua proximidade com a mãe indígena e tudo que passou na expedição colonizadora o façam condenar o ideal civilizatório europeu. Essa expectativa não é totalmente frustrada, mas também não é totalmente contemplada, mais uma vez em virtude do “entrelugar” que o desfecho também ocupa. Teofrasto, personagem autor do belíssimo texto que inaugura o livro, parece representar a posição final do nosso narrador, que aprende com as visões indígenas, observa o caráter destrutivo do ímpeto europeu, mas acaba vendo, também na Europa, a possibilidade de reconstrução do mundo, em saídas como as que Teofrasto apresenta. A pragmática violenta produzida pela religiosidade europeia é confrontada pelo narrador ao apresentar a potencialidade de saídas inversas, em que o sobrenatural e a natureza se sobrepõem quase que indistintamente, o que parece caracterizar um pensamento imanente, que flerta com as cosmogonias indígenas.
Considero incrível a tentativa de Ospina de nos fazer pensar sobre a ambiguidade de uma forma por meio da qual ela jogue contra a destruição colonialista, quando nossa tradição mais ou menos recente condena a ambiguidade como sinal de traição ou isenção irresponsável. Mais que estar em vários lugares ao mesmo tempo, a ambiguidade pode ser ressignificada política e simbolicamente nos termos sugeridos pelo narrador mais ao final do livro:
“E bem poderia ser que o que rege o destino do homem não fosse Cristo nem Júpiter nem Alá nem Moloch, mas Pachacámac, o deus dos avanços rumo a lugar nenhum, o deus da sabedoria que chega um dia depois do fracasso”.
A escolha de um deus "não-todo-poderoso", o deus do lugar nenhum, é a recusa da ideia de progresso, a qual implica necessariamente um lugar a se chegar na linha da evolução e que foi fiadora central do colonialismo.
Isso parece ser uma saída honesta, uma vez que, sim, não poderemos jamais apagar totalmente a chaga do colonialismo, o que significa dizer que viveremos para sempre um dia depois do fracasso.