Andreia Santana 15/10/2011
Alma de palavras, carne de papel e sangue de tinta
As palavras são vivas, pulsam, sentem, têm manias, um grande poder e são portais por onde entramos em outras dimensões. Quem defende e acredita nesta máxima, nos levando a compartilhar da mesma paixão, é a escritora alemã Cornelia Funke, autora de Coração de Tinta, que está de volta com a continuação Sangue de Tinta – lançamento recente da Cia das Letras -, livro que ela dedica ao ator Brendan Fraser. No cinema, em 2008, ele deu vida ao herói da história, Mortimer “Mo” Folchart.
Segundo episódio da trilogia Mundo de Tinta – o terceiro e último volume, Morte de Tinta, ainda não chegou ao Brasil -, Sangue de Tinta continua a narrativa iniciada no primeiro livro, quando o encadernador e restaurador de livros raros, Mo Folchart e sua filha, Meggie, descobrem ser dotados de um poder especial, capaz de dar vida aos personagens dos livros quando eles leem qualquer história em voz alta. Sem querer, Mo envia a esposa Resa para dentro do seu livro favorito e tira de lá três personagens: o saltimbanco cuspidor de fogo Dedo Empoeirado (Paul Bettany na versão cinematográfica), e os vilões Capricórnio e Basta.
Em Sangue de Tinta, Dedo Empoeirado tenta retornar para o seu próprio mundo dentro do livro. Para isso, conta com a ajuda de um outro leitor dotado do mesmo poder de Mo e Meggie, Orfeu. Só que Meggie e o pai também acabam dentro da história e a ação se transfere do ”mundo real” para a fábula. Metonímia: um livro que conta a história de outro livro, e metáfora perfeita do fascínio que o maravilhoso sempre exerceu sobre nós humanos, “o único animal dentre todos que é capaz de contar histórias”.
Cornelia Funke, que já manifestou o desejo de que Sangue de Tinta também vire filme (embora ainda não exista nenhuma pré-produção neste sentido) e que Brendan Fraser continue encarnando Mo Folchart, mostra com esta obra que é discípula – mesmo que não de forma consciente – de outro exímio contador de histórias: Salman Rushdie (autor do polêmico Os Versos Satânicos e do belíssimo O Chão que Ela Pisa). Ao menos, suas crenças e as de Rushdie quando o assunto é literatura, bebem na mesmíssima fonte: o mar de fios de histórias que tece a teia de todas as grandes narrativas da humanidade. Rushdie afirma que existe uma única e grande história universal que se reconta infinitas vezes, reinventada por autores em diversas línguas e estilos.
Sangue de Tinta comprova a teoria do autor, pois o Mundo de Tinta redesenha-se a cada reviravolta, moldado pela voz melodiosa e hipnótica de Mo e Meggie, ou ainda pela lira de Orfeu, um caprichoso aprendiz de poeta, egoísta, egocêntrico e capaz das vilanias que tornam esse universo fabuloso tão encantador e ao mesmo tempo tão tenebroso quanto o mundo fora dos livros. Além de Orfeu, diversos outros personagens novos entram na trama: os príncipes Porcino, Cosme, o Belo, e Cabeça de Víbora. Roxane, a saltimbanco, mulher de Dedo Empoeirado; Urtiga, a velha curandeira; e Principe Negro, o rei do povo colorido (os saltimbancos), com seu urso amestrado. Sem esquecer ainda as fadas azuis, ninfas, elfos de fogo e das ajudantes da Senhora Fria (a morte), as temidas Damas de Branco.
Classificado como literatura infanto-juvenil, Sangue de Tinta ensina muito mais aos adultos e constitui-se em narrativa deliciosa para qualquer idade. A maneira de Cornelia Funke contar histórias é ágil, poética, delicada como a canção de um trovador e intensa como um bom duelo de espadas em meio a florestas de árvores tão antigas quanto o tempo. O cenário medieval, descrito com maestria pela autora – e aqui ela mostra que é discípula do mestre Tolkien –, serve de pano de fundo ao desenrolar das tramas de amor, traição, disputa de poder e magia na dose certa, que é muito mais o encanto e o temor despertado pelas palavras do que necessariamente o brilho das varinhas de condão.
A trilogia Mundo de Tinta é uma das mais belas declarações de amor à literatura feitas por um autor contemporâneo. As citações de obras que vão do clássico ao pop, escolhidas com esmero pela autora para abrir cada capítulo de Sangue de Tinta, mostram que Cornelia Funke cresceu cercada do poder arrebatador da palavra escrita. Talvez por isso, muitos de nós, leitores, tenhamos um pouco da bibliófila Elinor Loredan, a tia-avó de Meggie, ansiosa para que os livros abram o portal e a deixem entrar no universo de encanto.
Quem é Cornelia Funke – Cornelia Funke já foi assistente social, ilustradora de livros infantis e quando era menina, queria ser astronauta e piloto de avião. Ela nasceu em 10 de dezembro de 1958, em Dorsten (Alemanha), e se formou em pedagogia na Universidade de Hamburgo. A compulsão por contar histórias surgiu depois que passou três anos trabalhando com crianças carentes e reparou que, para fugir da dureza da vida real, a meninada inventava universos paralelos e histórias mirabolantes. Além da trilogia Mundo de Tinta, é autora também dos best-sellers infanto-juvenis O Cavaleiro do Dragão e O senhor dos ladrões, livros premiados que ficaram meses na lista dos mais vendidos do New York Times. O senhor dos ladrões foi adaptado para o cinema em 2006, sob direção de Richard Claus.