Leitora Viciada 12/03/2012Este é o segundo volume de Imaginários, onde o leitor encontra variados contos de gêneros fantásticos. Cada volume é independente e a série de bolso segue um padrão gráfico de qualidade que a transforma numa bela e interessante coleção. Indispensável para quem curte a literatura fantástica nacional. Eu já havia lido e aprovado o volume um (tem resenha no blog) e agora terminei e gostei do volume dois.
Desta vez quatro escritores portugueses participam de Imaginários: João Barreiros, Jorge Candeias, Sacha Ramos e Luis Felipe Silva. Eles se unem aos brasileiros André Carneiro, Alexandre Heredia e os organizadores Eric Novello, Saint-Clair Stockler e Tibor Moricz para dar vida à imaginação fantástica.
Apesar de ter contos que me agradaram mais que outros, a coletânea possui histórias em um mesmo nível de qualidade literária. Todos são bons, não existem contos se destacando por serem superiores (mas claro, existem aqueles que te agradam mais, questão de gosto) e nenhum deturpando o livro por ser ruim. Isso torna a leitura agradável, já que todos os contos, embora sejam diferentes em estilos e narrativas, seguem um bom padrão, fazendo a leitura fluir.
A ilustração da capa, apesar de ser linda e bem detalhada, não combina exatamente com nenhum dos contos especificamente.
Se acordar antes de morrer..., de João Barreiros é para mim o melhor conto do livro. Totalmente magnífico. Aborda uma visão muito diferente de um período pós-apocalíptico. Através de um robô que segue sua programação cotidiana, sabemos como a tragédia abrange o mundo. Os detalhes da narrativa e a frieza e naturalidade dos atos do robô perante a tristeza que não pode ser notada por ele faz desse conto uma incrível história.
O segundo conto é Ás vezes eu os vejo, de Saint-Clair Stockler. Uma moça inconformada com sua vida pacata no interior sente-se perdida em meio a monotonia, apesar de ser a única capaz de ver seres estranhos circulando pela área. Gostei da ambientação e narrativa, da personalidade ousada da protagonista e a dúvida sobre suas visões. Seriam extraterrestres, intraterrestres, seres de outra dimensão, alucinações? Faltou apenas um desfecho impactante.
Utilizando a fantasia e a ficção científica Jorge Candeias é o próximo escritor, com Flor do Trovão. Esse conto semelhante a uma fábula é bastante interessante e filosófico. Mesmo se tratando de outra espécie, talvez alienígena, a busca pelo sentido da vida se faz presente, juntamente com outros questionamentos. O autor mostra outras espécies e o mundo primitivo e estranho. Não perde tempo com explicações e deixa isso por conta da própria interpretação e imaginação do leitor.
O conto seguinte é O toque invisível, escrito por Alexandre Heredia. Um tema totalmente atual está presente nesta trama bem escrita e desenvolvida: a globalização e a comunicação em tempo real. Um software desenvolve inteligência e vida própria e agora ameaça seus criadores, de uma grande empresa. Os diálogos entre as personagens e os sentimentos (?) desse novo ser em relação ao seu criador são os pontos fortes da história.
Eric Novello escreveu o brilhante conto O cheiro do suor. A trama é tão boa que por um momento até esqueci que era apenas um conto, desejava que fosse um livro completo. A narrativa em estilo noir, os cenários degradantes, o ar sombrio e perigoso e a violência que paira nas cenas já bastariam para enriquecer um conto. Mas o autor vai além e sacode as páginas de forma ousada acrescentando um conhecido ser sobrenatural com uma representação bem original. (os nomes me lembraram artistas do rock, como os irmãos Gallagher, Jack White do White Stripes e Amy Lee do Evanescence. Até enviei um e-mail ao autor, que me confirmou as referências)
A Rosa Negra, de Sacha Ramos é uma história aonde o uso dos gêneros fantásticos é mais discreto, porém presente em todo o desenvolvimento. A história e a narrativa são cativantes: num futuro próximo, um rapaz rico preso a uma vida que não foi escolhida por ele deseja apenas a liberdade de viver com seu amor. A mãe abusa de sua fragilidade para impedir o filho de desobedecer às ordens do falecido avô, do qual ele herdou a produção de rosas transgênicas. O final é ótimo.
Em A casa de um homem Luís Filipe Silva demonstra uma grande complexidade para um único conto. Uma história carregada de um enredo rico em detalhes, onde o protagonista busca bem mais que recuperar um antigo imóvel. Uma história futurista em cenários esplêndidos. Um governo neonazista dominante e muitas surpresas. Outro conto que poderia originar um livro.
O penúltimo conto é Eu te amo, papai de Tibor Moricz. Crianças presas a casulos alimentam as cidades através de uma energia gerada por elas num futuro distópico. Uma mistura de horror e ficção científica numa rebelião realizada por essas crianças. O autor acerta na escolha das motivações da revolta e na demonstração de como os sentimentos são tratados nessa sociedade sombria.
Por último, o conto de André Carneiro fecha o livro de forma maravilhosa, com uma narrativa impecável. Em Uma questão de língua, o protagonista é obcecado por uma mulher culta e atraente que deseja irredutivelmente um livro raríssimo. Ação e emoção surpreendem o leitor.
Contos que mais gostei: Se acordar antes de morrer, Flor do trovão, O toque invisível e O cheiro do suor.
Trechos:
"Neste processo tão simples, que consiste no simples atravessar de uma rua, as botas do Funcionário ficam tintas de lama. Ninhos de larvas de mosca sofrem uma hecatombe apocalíptica ao serem pisadas por um corpo cuja massa se aproxima dos duzentos quilos." - Se acordar antes de morrer... de João Barreiros.
"O que me incomoda é que parece que sou a única que pode vê-los. Não me sinto dotada de nenhum talento ou habilidade que justifique tal privilégio - se de privilégio se trata, pode ser mero acaso. Sou uma mulher comum." - Ás vezes eu os vejo de Saint-Clair Stockler.
"A profecia era clara: um dia nasceria uma fêmea tuu quando um só sol pairasse sobre o horizonte e o trovão se enrolasse nos picos das montanhas. Nasceria entre o relâmpago e o estrondo, e teria uma vida abençoada pelas deusas." - Flor do Trovão de Jorge Candeias.
"Todo sistema que possuir um controle eletrônico que estiver conectado a algum tipo de rede está vulnerável a ela. Em termos tecnológicos, ela é virtualmente onipresente. E onipotente. Iluminação, semáfaros, governos, bancos, nada está livre de sua influência." - O toque invisível de Alexandre Heredia.
"Sorrio de presas arreganhadas e fico de pé. Somos agora iguais em tamanho e em coragem diante do desconhecido. Chuto sem querer as latas espalhadas pelos tacos da sala e corrijo a falta de educação, oferecendo uma cerveja que está gelada." - O cheiro do suor de Eric Novello.
"A Rosa era magnífica. Negra, mas luminosa, com milhares de pequenos pontos de luz, brilhando como centelhas nas pétalas aveludadas. Nascia de um caule frágil, dourado, entre folhas cor de ouro velho raiadas a negro." - Rosa Negra de Sacha Ramos.
"Nova Iorque tinha se transformado numa nova Hong Kong de espírito mais intensa e feroz que esta actualmente era; tudo aqui, aliás, era e sempre tinha sido mais competitivo, mais forte, mais." - A casa de um homem de Luís Filipe Silva.
"Aquilo era um disparate. Crianças não se organizavam. Crianças nada mais faziam a não ser disponibilizar energia - pelo tempo que ela durasse - para a sobrevivência do núcleo. Crianças não tinham cérebros suficientemente desenvolvidos para realizar tarefas complexas." - Eu te amo, papai de Tibor Moricz.
"Não havia estátuas, só livros, milhares, todos numerados, Crime e castigo, 2.576. Com a corda me alcei na prateleira mais alta. Sem olhar, retirei um livro, coloquei-o no único bolso, em meu peito." - Uma questão de língua de André Carneiro.