Caroline Gurgel 21/03/2017Excelente...Uma biografia meio romanceada de um dos maiores compositores do século XX, escrita por um autor consagrado com um Man Booker Prize. Foi assim que O Ruído do Tempo me foi apresentado. Prometia boa literatura e um pouco da vida de Shostakovich, uma deliciosa combinação.
O autor escolheu alguns episódios - sempre envolvidos com o governo comunista soviético - da vida de Shostakovich para abordar, então não temos aqui uma biografia completa e linear, nem um estudo sobre a sua música. Aliás, a música é pouco citada.
O Ruído do Tempo foca nos conflitos vividos pelo compositor, nas difíceis decisões que teve que tomar [ou que tomaram por ele] e que influenciaram completamente sua vida e carreira. Ficção e realidade se misturam quando entramos na mente de Shostakovich, nos seus pensamentos, nas suas angústias.
O primeiro e mais importante episódio narrado aconteceu em 1936, quando Stálin foi assistir a aclamada ópera de Shostakovich, a Lady Macbeth de Mtensk. Dias depois, saiu no Pravda, principal jornal da época, que aquilo era "confusão ao invés de música". A obra foi censurada e Dmitri Shostakovich caiu em desgraça. É a partir daí que tudo se desenrola.
A sensação que temos é a de que Shostakovich era tão bom, mas tão bom, que o Governo, vendo que ele fazia muito sucesso com o público, resolveu usá-lo a seu bel-prazer. Seria uma ótima propaganda. Vejam como valorizamos a música! E Shostakovich teve que dançar conforme a música. Era isso ou morrer!
Covardia, fraqueza ou falta de opção? Sua vida ou sua integridade? Era um gênio, não um herói. Julian Barnes fala que ser covarde é mais complicado do que ser herói. Para ser herói basta uma morte simbólica, enquanto o covarde vive a angústia da mentira por toda uma vida. Será?
Há ainda um outro ângulo, uma outra possibilidade a ser considerada. Alguns acreditam que Shostakovich era irônico. Fingia ser a favor do regime, mas expressava o que bem queria em suas sinfonias. Há quem reconheça essa rebeldia em sua obra.
"O sarcasmo era perigoso para quem o empregava, identificável como linguagem do destruidor e do sabotador. Mas a ironia - talvez, às vezes, ele esperava - permitiria que conservasse o que valorizava, mesmo quando o ruído do tempo se tornava alto o bastante para quebrar vidraças. O que ele valorizava? Música, família, amor. Amor, família, música. A ordem de importância costumava variar. A ironia podia proteger a música? Desde que a música continuasse a ser uma linguagem secreta que permitia que contrabandeasse coisas pelos ouvidos errados. Mas não podia existir apenas como um código: às vezes era preciso dizer as coisas de forma direta. A ironia poderia proteger seus filhos? Maxim, na escola, com dez anos de idade, tinha sido obrigado a caluniar o pai publicamente numa prova de música. Nestas circunstâncias, de que servia a ironia para Galya e Maxim?"
O livro me trouxe muitas reflexões acerca dos musicistas e suas reais relações com os governos tirânicos. Até onde o público sabe a verdade? Até que ponto um artista abandonaria sua música? Até que ponto somos íntegros quando a vida de sua família corre perigo? Fugir, como fez Stravinsky, por exemplo, é uma opção?
Não bastasse tudo isso, a escrita de Barnes é fabulosa. Com uma narrativa não linear, daquelas que não se pode piscar, o autor me deixou estupefata, querendo ler tudo que já escrevera. Entrei pela música e saí deslumbrada com um livro sensacional!
@historiasdepapel_
site:
www.historiasdepapel.com.br