MatheusPetris 10/01/2022
Fico intrigado com romances cujos títulos levam nome de personagens. Acabo por esperar um protagonismo que se evidencia do início ao fim; por uma proximidade íntima com ele, como um tête-à-tête entre o leitor e ele. Aqui, isso se orienta em outra direção. Goriot, o velho misterioso hóspede da pensão Vauquer, é uma espécie de centro gravitacional da narrativa. Quando nada é sobre ele, ainda é sobre ele.
A pensão, espaço privilegiado do livro e, diga-se, o nosso ponto de vista, carrega personagens fortes, ainda que pouco explorados. E não me refiro a esse detalhe como um ponto negativo, afinal, tais forças são sempre demarcadas no distanciamento e zombaria de todos com Goriot. Começamos sabendo pouco sobre eles e terminaremos assim. Todavia, sabendo muito sobre as agruras de uma sociedade mesquinha, torpe e, no caso dessas maleficências, sem distinção de classe. Mas há exceções. O jovem (e utópico, caso não considerem um pleonasmo) Rastignac é também uma força protagonista, quiçá, o que mais conhecemos, aquele do qual o narrador mais se aproxima.
Há mesmo? Pois, como dizem, “Em Paris o sucesso é tudo, é a chave do poder.” É nessa busca que tantos se encontram, ou melhor, se afirmam. E não se trata apenas de um sucesso alcançado, ele deve ser visto. Pois, seja na sociedade parisiense ou na nossa, mais importa o momento exibido do que vivenciado. Se trata sempre de aparências. Seja no nível da indumentária, quanto do meio de transporte. E é justamente através dessa luta consigo pelos outros e com os outros, que as filhas de Goriot mergulham – mesmo que na lama. Em dado momento, Balzac afirma: “Joguem a sonda, jamais conhecerão sua profundidade”, ao se referir a uma possível investigação da sociedade parisiense. Ciente da impossibilidade, vai atrás dela, perscruta e encontra tal lamaçal. Ou melhor, nos pensamentos de Rastignac: “Via o mundo como um oceano de lama no qual um homem mergulhava até o pescoço se ali molhasse o pé.”
Se na iminência da morte, aquela que recebeu não só a vida, mas teve todos seus caprichos possíveis realizados, prefere terminar seu toalete para chegar antes ao baile, do visitar seu pai, moribundo e prestes a morrer; como acreditar em algo? Como amar? São perguntas minhas, mas poderiam ser de Rastignac. E, se me permitem a paráfrase, ao menos, o parricídio foi elegante.
Todavia, “deixemos a sociedade, hoje quero ser muito feliz.”. Saqueio falas para chegar no amor, afinal, “O amor em Paris em nada se parece com os outros amores.”. Digo ainda de outro modo. O amor de Balzac é muito diferente dos seus contemporâneos, pelo menos nesse romance. Fazendo uma breve analogia, pensando em seu conterrâneo Stendhal que se debruçou sobre o amor não só em ensaios, mas sendo ele a seiva de tantos dos seus romances… Eles não o tratam de forma tão distante? Em Stendhal, ele circula a narrativa, a ronda, a faz rodopiar, cria crenças e destrói credos. Em Balzac, ela circula em segundo plano, quase fora da moldura. É como se não houvesse espaço no quadro, as personagens estão tão ensimesmadas em seus objetivos, que ele não tem força para agarrá-las, conquanto em Stendhal, é justamente através dele que o ensimesmamento ocorre. Isto é, para Balzac “o amor é uma religião, e seu culto deve custar mais caro que o de todas as outras religiões”, ou seja, o custo vai para além dele mesmo… Para a sociedade. O cinismo contaminara Balzac? A citação a Diógenes não foi atoa…
Ou, se pensarmos nas derradeiras e dolorosas páginas finais do livro, Balzac o enxerga cinicamente. A começar pela estrutura do desenvolvimento final, pois, quando a história caminha para uma resolução fortuita, numa ascensão contínua, a queda vem para relembrar a realidade.
Num abandono, em uma espelunca mal iluminada por uma vela, os ataques de insanidade (ou seriam sanidade) de Goriot revelam seus mais profundos pensamentos, aqueles que se recusou a acreditar durante toda sua vida. Entre insanidade e sanidade, momentos de revelação. Principalmente para Eugène Rastignac. Antes crente no amor, ao presenciar os verdadeiros atos da alta sociedade, pode enfim, enxergar sua verdadeira podridão.
A reflexão gerada pela iminente morte pode ser representada por Ivan Ilitch, personagem da famosa novela de Tolstói. Goriot e Rastignac, assim como Ivan, compreendem não só o passado dos quais foram peças (hoje desgastadas), mas o caráter daqueles que os rodeiam. Alguém se salvaria? Difícil dizer. O poder tem um grito que me impede de ouvir a resposta. A solitária morte dos pobres é a constatação de uma sociedade inescrupulosa. Para seus protagonistas… e para nós.