Flávia Menezes 08/05/2023
?E SE FREUD NÃO EXPLICA? JUNG PODE EXPLICAR!
?Um Amor Incômodo? é um livro escrito pelo pseudônimo de Elena Ferrante, cujo verdadeiro nome e identidade permanecem uma grande incógnita até os dias atuais. Este é o primeiro livro escrito pela autora (vou usar aqui esse gênero para facilitar a referência), tendo sido publicado em 1992, porém que só chegou em terras brasileiras em maio de 2017.
Esse foi o meu primeiro contato com a escrita de Elena Ferrante, e confesso que não fazia ideia de que esse fosse seu primeiro romance escrito. Mas se soubesse, até teria ficado mais curiosa, porque é uma delícia sentir a essência da escrita acontecendo exatamente nos primeiros passos do escritor.
Mas mesmo não sendo esse o motivo de ter escolhido exatamente esse livro e não os da tetralogia napolitana, ler as primeiras linhas (chocantes!) desta história é o que me fez iniciar sem pensar duas vezes. Que maestria Ferrante teve em abrir a sua história com o suspense, e ir desenrolando-o até o último ponto final. Não há como negar o quanto a sua escrita é primorosa, e nos envolve com muita facilidade.
Enquanto lia, muitas das cenas me recordaram o filme ?Cisne Negro?, de 2010, que foi estrelado e protagonizado pela atriz Natalie Portman, que inclusive a concedeu o Oscar de Melhor Atriz pelo seu papel como Nina, uma bailarina tão obcecada pela dança quanto pela relação (simbiótica) com a sua mãe.
Assim como Nina tinha uma visão da onipresença da mãe, Délia, a protagonista desta história, também tinha. O que me levou a concluir que aqui também houve um debruçar com mais profundidade na psique da protagonista. Uma suspeita que acabei confirmando, ao encontrar um artigo online que dizia que Ferrante chegou a afirmar que o título original deste livro, ?L´amore molesto?, tem referência ao texto de Sigmund Freud, ?Sexualidade Feminina? (1931), que discute a fase que antecede o Édipo das mulheres.
Uma das afirmações que Freud fez ao longo da sua vida e carreira, é que o entrecruzamento do Édipo com a lógica da castração, a partir da supremacia do falo (ou seja, do órgão sexual masculino), determina a inexistência de um significante que simbolize o sexo feminino. Trocando em palavras mais simples: não existe uma saída do Complexo de Édipo para mulheres, e o desenvolver da nossa feminilidade é muito mais complexo do que ocorre com os homens.
Mas muito embora o "pai" (entre aspas, porque ele não é o pai) da psicanálise tenha encontrado limitações para essa condição da forma como se dá o desenvolvimento do feminino, Jung não se deu por vencido, e tentou ampliar um pouco mais o conceito desenvolvendo o ?Complexo de Electra? para explicar essa etapa do desenvolvimento psicossexual envolvendo as meninas, que resulta na passagem do primeiro amor da filha pela mãe, para o pai.
Tanto Édipo quanto Electra são nomes retirados de mitos, onde no primeiro o filho mata o pai para ficar com a mãe, e no segundo, Electra planeja matar a mãe motivada pela raiva e rancor da ausência do amor materno por ela. A semelhança entre os mitos está no fato de que para que aconteça o desenvolvimento psicossexual da criança, o amor pelo seu genitor do sexo oposto deverá aumentar.
Fazendo essa breve introdução a esses conceitos, agora fica mais fácil discorrer sobre o que vi e senti com essa história.
Uma das coisas que achei muito bonito na narrativa, é que Délia vai fazendo um caminho de volta aos lugares da sua infância, a começar pela casa materna, e terminando no mesmo local onde sua mãe esteve com vida pela última vez. Digo isso porque existe uma grande beleza por trás dessa forma como a protagonista não apenas vai revivendo suas experiências do passado, mas como também vai tentando delimitar a sua própria identidade.
Logo no começo, quando Délia nos conta sobre a morte da sua mãe, e revela já ter quarenta e cinco anos, duas coisas ficaram bem claras para mim: a relação simbiótica com a mãe, e seu conflito com o feminino.
Quando essa mãe morre, Délia não sabe mais quem é, porque a vida toda ela permaneceu como se ainda fosse um bebê que ainda depende exclusivamente da mãe, e não se vê como um ser separado dela. Isso mostra o quanto Délia ainda é muito infantilizada, e me fez concluir que esta se trata de uma protagonista com sérios problemas psicológicos.
De fato, para mim, Délia fica transitando entre o mentalmente saudável para o psicologicamente perturbada, porque a frequência com a qual uma mulher de quarenta e cinco anos tem de pensar no corpo e na sexualidade da mãe, não é algo normal. Mulheres adultas de mais de quarenta anos e psicologicamente saudáveis, já terão a sua vida sexual bem estabelecida, sem precisar buscar referencial externo, muito menos na própria mãe.
E foi isso que me fez pensar que Délia deveria sofrer de algum transtorno, porque a forma como tudo se resumia ao corpo feminino da mãe, e sua atividade sexual com seus parceiros, parecia algo vindo de uma mente delirante e bastante perturbada. Porém, quando ela vai revisitando um lugar da infância, que entre doces e sabores também marcava um abuso sexual ocorrido, temos a certeza de que Délia tem muito mais problemas do que só o vivenciar a dor pelo luto da mãe morta.
Os delírios de Délia sobre mutilação genital e de repulsa pelo período menstrual (algo que é tão próprio de ser mulher, e que nos liga a capacidade de gerar e dar a vida), mostra o quanto ela tem sérios problemas em compreender e aceitar o feminino. E quando olhamos para essa dificuldade, precisamos entender o que existe por trás.
Além de ter sofrido um abuso sexual, Délia passou seus primeiros anos de vida (infância) acompanhando a mãe sofrer nas mãos de um pai violento e abusivo. E para completar o cenário, ela foi arrastada para o caso extraconjugal da mãe, onde a via trocar beijos e carícias com seu amante, para logo em seguida ser abandonada para ser molestada por homens que tinham acesso livre à ela.
Não tem mesmo com uma mulher como essa desenvolver uma vida sexual adulta, ativa e saudável depois de ter crescido em um lar disfuncional, e quando fora, ainda ser jogada em outros ambientes tão nocivos e abusivos quanto o presenciado em sua própria casa.
De fato, o que vemos em Délia é uma mulher adulta que vê seu mundo reduzido à homens predadores e mulheres tão vítimas deles, quanto culpadas por sua sensualidade que os atraí e os faz perder a cabeça.
Quando Délia tem um reencontro com o pai, o momento é bastante comovente, e é uma oportunidade para termos acesso à mente desse homem que é visto como exclusivamente violento e possessivo, tanto quanto dependente e apaixonado pela mãe.
E o que encontramos é o retrato de um homem frustrado, amargurado, e que carrega esse fardo de não ter sido bom o bastante para fazer com que sua mulher o amasse, se consumindo dia após dia pelo rancor de ter sido por ela abandonado. Aqui já vemos o motivo pelo qual a castração freudiana não aconteceu: esse pai estava tão obsessivamente voltado para essa mãe, que não contribuiu para que o processo de separação entre mãe-filha acontecesse.
"Um Amor Incômodo" não é apenas uma história que incomoda, mas é um relato muito doloroso sobre abandono, traumas e abusos, que Ferrante tenta (e com muito sucesso) suavizar com sua escrita leve e fluída.
E muito embora esse livro tenha essa profundidade psicológica, eu senti que essa permanência na mente adoecida de Délia pode dar a falsa ideia de que suas alucinações e problemas podem até ser naturais. E é preciso ressaltar aqui que não é normal uma mulher aos quarenta e cinco anos ficar obsessivamente pensando no corpo e na sexualidade da mãe. Isso é proveniente de todos os problemas psicológicos sofridos pela protagonista.
E para ser bem sincera, ao final da história eu fiquei me perguntando se o intuito de Ferrante era mesmo de trazer a questão da castração freudiana, ou se por trás dessa obsessão da Délia com a mãe não se esconde a verdadeira identidade de Elena Ferrante, que sendo de fato homem, usou aqui o espaço para trazer suas fantasias infantis vindas do seu próprio Complexo de Édipo. E essa é uma pergunta que nem mesmo Freud e nem Jung poderão me responder.