Vania.Cristina 21/02/2024
Deixando de lado o ego e buscando a essência das coisas
Trata-se de coletânea de poemas haicais, organizada por Rodolfo Witzig Guttilla, criados por poetas brasileiros, e alguns (poucos) traduzidos (e recriados) da poesia clássica japonesa.
A introdução do livro é rica em informações e é sobretudo a partir dela que escrevo minhas impressões.
Guttilla faz uma breve descrição do surgimento e do desenvolvimento dos haicais no Japão, a partir do século VII. Depois, fala de sua introdução no Brasil e de como, aos poucos, os haicais foram abrasileirados.
Tudo começou em 1906, com o jovem Monteiro Lobato traduzindo seis haicais e os publicando no jornal O Minarete, de Pindamonhangaba, interior paulista, junto com um texto que falava da cultura japonesa. Dois anos depois, a nau Kasato Maru chegava ao Brasil com os primeiros imigrantes japoneses, e ainda a bordo foi produzido o primeiro haicai em terras brasileiras.
A partir daí, vários de nossos poetas vivenciaram os haicais, passando pelos modernistas até o seu auge no país, nos anos 80.
Através do texto de Guttilla pude entender o que me motivou a comprar e ler Caprixos e Relaxos, de Paulo Leminski, ainda na década de 80. Eu era uma jovem leitora assídua do caderno de Cultura da Folha de SP, Ilustrada, que trazia notícias e reflexões sobre as grandes tendências da cultura da época. E havia a prestigiada Editora Brasiliense que começou a revolucionar, com sua ousadia, o nosso mercado editorial. Foram várias ações de vanguarda, uma delas foi a publicação dos haicais do Leminski. Até então, eles estavam restritos à cultura pop, de massa, e eram considerados gênero menor. A Brasiliense, respeitada pela intelectualidade, trouxe uma nova perspectiva e um novo status para os haicais, a partir da publicação de Caprichos e Relaxos.
Eu ainda me lembro do impacto dessa editora sobre os jovens estudantes como eu, que começaram a ter acesso, através de linguagem fluida, de pensamentos e reflexões, principalmente por causa dos seus livros de bolso (as coleções Primeiros Passos, Encanto Radical e Tudo é História). Na mesma época, a Brasiliense tirava os haicais de um estereótipo e lhes dava o prestígio de arte que mereciam.
O pensamento e a arte passavam a ser vistos e compartilhados de forma mais democrática. Não é a toa que os anos 80 são os anos de redemocratização do Brasil.
Foi muito legal ver um pouco disso tudo na introdução do livro e entender melhor a potência dos haicais no nosso país. Eu me senti como quem vivenciou essa história, fez parte dela.
De todos os poetas que a coletânea me apresentou fiquei querendo conhecer mais do trabalho de Millôr Fernandes. Não sabia da sua importância para a popularização dos haicais no Brasil, e ela foi enorme. Sem falar que ele foi o único, aqui em nossas terras, a reunir os haicais com ilustrações, já que dominava as duas artes.
Penso que o que poderia ter sido um caso de apropriação cultural é, na verdade, um processo legitimado de diálogo entre culturas, de troca. Nós brasileiros fomos feitos assim, frutos de várias misturas.
A poesia haicai não é simplesmente síntese, métrica, forma ou conteúdo. Ela é uma postura perante o mundo, um exercício filosófico de observação. Ela busca, através de conexões com a natureza e com o outro, interiorizar o externo. Essas conexões precisam colocar o ego em segundo plano, daí uma das maiores dificuldades. Você observa, sente e procura a essência, sem racionalizar, sem se colocar, expressando de forma objetiva, o que vê.
Poesia haicai é a busca pela essência das coisas e pela simplicidade. É viver o momento presente através da expressão artística. É exercício de conexão com o mundo natural. Exercício de desapego e de desprendimento.