Higor 10/04/2017
Sobre uma literatura indiferente aos padrões (de um autor idem...)
Como se não bastasse a polêmica envolvendo a escolha de Dylan para o Nobel, o que suscitou novamente perguntas sobre o conceito de literatura, (sem falar do seu aparente desdém em recebê-lo), o leitor se viu obrigado a se contentar, além dos mais de 30 álbuns, com uma autobiografia incompleta e um livro que ninguém consegue definir com exatidão.
'Tarântula' foi definido pelo próprio autor como "tudo aquilo que não consigo cantar ou que é grande demais para ser um poema". 'Desolation Row', música incrível dele, tem 120 versos em 12 estrofes, o que contradiz um tanto a justificativa, mas tudo bem. O consolo é que, assim como frisado na capa, 'Tarântula' é de ficção, o único do Dylan; o frustrante é que a escrita é uma das mais complicadas de se encarar, o que certamente vai causar raiva em muito leitor – e a ira de quem não concorda com o seu Nobel.
Sendo assim, 'Tarântula' mais parece uma coletânea de microcontos com temas aleatórios; ou fragmentos de uma história com um contexto político com ares de uma monarquia em ruínas ou um socialismo ferrenho e opressor; e como complemento a cada término de capítulo, ainda há cartas endereçadas as mais bizarras pessoas possíveis e seus feitos igualmente desconcertantes. Sim, caro leitor, não há uma linearidade, um personagem principal ou um tema a ser apresentado em todo o livro. O fluxo é atemporal, esférico, estático, como se o ambiente fosse desprovido de qualquer aparência natural, e os personagens convivessem em uma bolha.
Mesmo com características que tracem 'Tarântula' como um livro ruim, ele não é. Quem escutou algumas músicas de Dylan, certamente vai perceber que alguns textos têm traços convincentes de simples composições descartadas, e que seriam boas canções em algum álbum.
Há ainda textos satíricos bem pontuados, com críticas fortes a tantos assuntos, desde ao socialismo, passando por temas atuais e corriqueiros (racismo, abuso de poder), que o leitor, embora não entenda o propósito do livro de maneira geral o ou encare com bons olhos, vai dar um sorriso de lado e entender alguns dos fragmentos, até porque, mesmo propositadamente confuso, o texto flui e não cansa o leitor de desafiar a escuridão da narrativa.
Embora psicodélico e atemporal, eu li antes 'Crônicas' e 'A balada de Bob Dylan', (uma ótima biografia), o que me ajudou a tentar entender a mente e contexto pessoal e histórico de Dylan dos anos 1965 e 66, período em que os textos foram escritos. O próprio Dylan afirma que o que produzira na época 'mais parecia vômito' e que 'estava cansado e cogitando parar de cantar'. Uma das mais célebres canções dele, 'Like a Rolling Stones', surgiu de 20 páginas de versos escritas no período. Seriam páginas do que hoje é 'Tarântula'?
Embora bom, o livro não é para todos, e leitores insatisfeitos com a Academia Sueca vão encontrar mais motivos para reclamar da escolha do cantor. De qualquer forma, Dylan foi laureado pelas composições, então, de qualquer, este livro não se torna, necessariamente, alvo de avaliação.
Este livro faz parte do projeto 'Lendo Nobel'. Mais em:
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