Ari Phanie 23/11/2020Freud explicaJá tendo lido Pequenos Incêndios Por Toda Parte, eu me preparei pra encontrar nesse livro que é a estreia da Celeste Ng , outra boa trama discutindo relacionamentos familiares e questões não resolvidas. Não errei. E assim como em Pequenos Incêndios, Tudo o que Nunca Contei é uma leitura morna que vai esquentando devagar, sem pressa, mostrando ao leitor todas as vicissitudes que levaram aos eventos finais. Ao acompanhar a família Lee, desde antes de ser formada nós vamos entender como tudo chegou onde chegou. É um caminho cheio de erros desde o início, mas como acontece na vida, nunca se sabe qual é o ponto de virada, até chegar lá.
James é um sino-americano vivendo nos Estados Unidos em uma época em que a xenofobia corria livre e solta (nos dias de hoje é disfarçada), e ele passou sua vida toda tentando se ajustar, tentando pertencer; internalizando uma raiva, ao meu tempo, contra si e contra a sociedade preconceituosa na qual vivia. Já Marilyn sonhava em ser exatamente o oposto daquilo que sua mãe queria; para ela, ser médica era a única coisa que importava. James e Marilyn se conheceram, se apaixonaram e encontraram um no outro o que não esperavam: aceitação e casamento. A vida dos dois ia muito bem, apesar dos pesares. Mas a tecla do "inserir-se" ainda martelava na cabeça de James, assim como o sonho de Marilyn ainda estava muito vivo nela. E quando você não tem tais questões bem resolvidas consigo mesmo, onde melhor você pode externá-las do que naqueles seres que você acha que são uma extensão sua, e portanto podem fazer aquilo que você não fez? Ou ter aquilo que você não teve? Esses seres, claro, são os filhos. E em Tudo o que Nunca Contei, um filho em especial carrega o peso do narcisismo inconsciente dos pais.
Lydia é uma adolescente tímida, que também não se encaixa, como o pai. E, ao contrário da mãe, não faz ideia do que quer ser. Mas seus pais não a veem como pessoa, mas como uma extensão, e Lídia encarna esse personagem da forma mais passiva que consegue, porque seus traumas infantis a pressionam a isso. Seu único porto-seguro é seu irmão mais velho, Nath, que sabe exatamente quem ela é. Nath é um personagem que você pouco desvenda, mas que nem por isso você deixa de entender o pouco que você conhece dele. Ele e a querida Hannah, a caçula da família, são deixados de lado enquanto todas as atenções se focam em Lydia. E apesar de serem menosprezados e desconsiderados, eles são os que podem ser considerados mais "normais" dentro do família.
Resumindo, os Lee são uma família disfuncional, com indivíduos cheios de frustrações vivendo sob pressão, amargura e silêncio. Vivem ao redor uns dos outros, sem se ouvir, e até mesmo, sem se ver, o que leva aos exatos acontecimentos trágicos e tristes do final. E precisou toda a dor, perda e arrependimento para que eles finalmente entendessem uns aos outros. Terapia teria sido mais fácil, mas...
Celeste Ng fez um ótimo trabalho em seu primeiro livro, abordando assuntos tão complexos em uma história com tantas camadas, com personagens tão fáceis de entender e tão complicados. Ainda prefiro o segundo livro da autora, mas esse me confirmou que ela desenvolve muito bem temas relacionados a família. Com certeza, lerei seus próximos trabalhos.