Lucas 09/09/2019
Ficção rasa, contextualização inteligente: Quando o contexto da narrativa supera a sua ficção
José Maria de Eça de Queiroz (1845-1900) foi o grande precursor em Portugal da explosão do realismo europeu, iniciada a partir da década de 1850. Não só em função de idioma, mas principalmente por aspectos políticos e econômicos, toda a obra de Eça é muito popular no Brasil: durante boa parte da sua carreira, o Brasil estava sob o reino de Dom Pedro II, que durou de 1831 a 1889. Não raro é, inclusive, que se confunda, em meios menos eruditos e acadêmicos, a nacionalidade do autor devido a esta influência. Obras como O Crime do Padre Amaro (1875), O Primo Basílio (1878), A Relíquia (1887) e A Cidade e As Serras (póstumo, de 1901) são grandes símbolos disso.
Todavia, nenhuma obra de Eça de Queiroz se destaca mais em terras tupiniquins do que Os Maias (1888), representante máximo desse realismo mencionado, com um viés bem descritivo e com certos contornos romanceados. Em 2001, a obra foi inclusive adaptada pela Rede Globo, em uma minissérie estrelada por Fábio Assunção e Ana Paula Arósio (aliás, uma divagação pontual, mas aquele par de olhos azuis faz falta na mídia). Basicamente, Os Maias conta a história de três gerações de uma família da alta sociedade lisboeta da segunda metade do século XIX. Afonso da Maia é o patriarca, típico fidalgo com idade avançada, e a história se inicia com os preparativos na casa do Ramalhete, quase que um palácio da família que estava desocupado e que agora Afonso preparava para receber seu neto, Carlos Eduardo, então recém-formado médico.
É Carlos Eduardo quem toma as dores de protagonista da narrativa. Após esse prólogo com os preparativos para sua chegada, a história retrocede cronologicamente para contar a trajetória de Pedro, filho de Afonso e pai de Carlos. Sua jornada indica, logo de cara, a preocupação de Eça em ilustrar o distanciamento que existia entre classes superiores e inferiores da hierarquia social portuguesa. Não só entre classes diferentes, mas até mesmo dentro do que pode ser chamado "nobreza" havia muito preconceito com pessoas "de fora", cuja origem de suas riquezas poderia ser questionada (muito desse preconceito acaba se justificando antes mesmo do suceder dos fatos, todavia). Partindo dessa contextualização, a história se desenrola e, nesse desenrolar, percebem-se alguns fatores que trazem certo peso a leitura.
O peso nesse caso não é em termos explícitos: não há situações dramáticas, socos no estômago ou outras ocasiões perturbadoras, presentes em obras realistas. O que há é um marasmo, que cansa muito em vários momentos. Eça de Queiroz quis, de fato, representar as hipocrisias existentes na dita "alta sociedade" lisboeta e ele o faz, com louvor. Mas são tantos os saraus, festas, encontros entre amigos, entre outras futilidades que fazem com que o leitor menos paciente se questione sobre o que esses personagens principais faziam pra viver. Carlos Eduardo, por exemplo, era um médico, mas o seu ardor de ajudar os pobres e necessitados é bem raso, o que poderia trazer um pouco mais de grandeza a seu personagem. Aliás, é a ele que boa parte das ressalvas da narrativa está relacionada.
Carlos Eduardo da Maia é o protagonista, mas passa longe de ser um personagem vivo, com ideais superiores, que conduza a narrativa por meio de suas ações. Fica a impressão de que ele é um artefato incolor, alguém que mesmo quando exacerba suas paixões o faz com frieza... É raso e promíscuo em vários momentos. João da Ega, seu melhor amigo, é um personagem pintado com cores mais vivas, por exemplo, muito ativo, leal e que desempenha um papel essencial dentro da obra (especialmente em sua conclusão). Por outro lado, também passa essa impressão de "desocupado", mas que por ter essas características mais passionais, traz uma maior identificação ao leitor. É mais próximo de um perfil boêmio e um pouco caricato, ao passo que Carlos não passa a impressão nem de ser "malandro" (no sentido cômico), nem de ser um herói com coisas a ensinar. Maria Eduarda, a protagonista feminina, é desenvolvida de forma similar, como alguém "sem sal". É evidente que não é a quantidade personagens com algum viés bom ou mal que faz um livro ser ótimo, mas os seus componentes precisam ser desenvolvidos de uma forma que cative o leitor, seja criando elementos que ensinam ou até mesmo que causem repugnância a quem lê.
Contudo, nesses momentos de maior nulidade narrativa ocorrem algumas divagações bem pontuais e que precisam ser aqui assinaladas. A crítica, por exemplo, que muitos personagens secundários fazem à monarquia da época, a importância da literatura nesse contexto de "libertação", e, principalmente, a análise de Portugal como povo e país, geram debates interessantes. Considerando-se que a narrativa d'Os Maias se passa aproximadamente na época de sua publicação, onde ainda existia uma influência considerável de Portugal sobre o Brasil (mesmo com a Independência em 1822), torna-se interessante que o leitor brasileiro extraia dessas divagações muitas semelhanças entre o patriotismo português e o aqui existente até hoje, marcado por uma carga de pessimismo e pequenez.
Não só por isso, mas a narrativa traz pontos positivos por outros fatores. Um deles é uma inconstância, que faz com que o leitor pense que o grande cerne do livro é uma coisa no seu primeiro terço; depois (bem depois), surgem revelações que, aparentemente desconstroem o que se imaginava no início; por fim, a catarse da obra se revela em seu último quinto, similar ao que se acreditava lá no primeiro terço (pelo menos foi o que ocorreu ao autor da presente resenha). Estas voltas narrativas trazem uma sensação de expectativa, mas são incapazes de tornar Os Maias facilmente "devorável". Outro aspecto engrandecedor, este o principal, é o olhar narrativo sempre voltado para a hipocrisia, o adultério e as aparências. Nesse ponto, Eça de Queiroz já havia ilustrado sua capacidade de "cutucar" a alta sociedade no excelente O Primo Basílio (1878), que trata das diferenças de tratamento social dadas a um homem e a uma mulher envolvidas em traições. Aqui em Os Maias, a crítica é mais genérica, quando se expõe que adultério e cobiça são elementos normais dentro de uma sociedade que aparenta ser "superior", não somente em aspectos econômicos, como sociais e de formação.
A leitura de Os Maias vale, por isso, mais pelo seu aspecto de crítica, e não pela narrativa em si, que se revela problemática em entreter e cativar o leitor. Obviamente que trata-se de um clássico absoluto, de grande importância para a língua portuguesa e isso não pode ser questionado. Mas o que pode ser alertado é que se o futuro leitor espera um romance proibido, de intrigas da "corte", de escândalos e imprevisíveis reviravoltas, dificilmente ele encontrará isso na obra-prima de Eça de Queiroz. Ficará esse leitor, após a leitura, com a imagem de um livro eficiente em matéria de provocação social, mas com falhas bem latentes no que tange a ser uma opção dinâmica de entretenimento literário.