spoiler visualizar.Igor 18/02/2021
A primeira vez que li "The Ballad of Black Tom" foi em 2016. Na época, ele me marcou muito, achei uma leitura muito forte e importante. Após alguns anos, a releitura mostrou que vi apenas uma fração do livro que LaValle escreveu. Creio que, por isso, esse texto será meio longo, vou até colocar a tag Spoiler aqui pra servir de aviso, porque vou contar um pouco das primeiras páginas do livro agora.
Tudo começou em uma manhã em particular, com Charles dando uma saída de seu apartamento no Harlem; ele tinha sido contratado para fazer uma entrega em uma casa no Queens - nominalmente apenas outro bairro de Nova York, mas para Charles, era uma viagem arriscada. Charles morava em um pequeno apartamento no Harlem com seu pai, Otis, um homem que tem estado morrendo desde que sua esposa falecera, vinte anos antes. Para Charles Thomas Tester, mesmo sendo filho único e com vinte anos, a independência não veio com a idade e ele não se importava com isso. Charles trabalhava para cuidar de seu pai; Ele aplicava pequenos golpes, fazia bicos aqui e ali, e fazia entregas para prover comida e abrigo para o pai e um pequeno extra às vezes.
Um pouco depois das 8h da manhã, ele deixou o apartamento em seu terno de flanela cinza, um pouco abarrotado e com as mangas notavelmente curtas. Um bom tecido, mas já mostrando sinais de uso. Isso deu a Charles uma certa aparência, como um cavalheiro sem a conta bancária de um cavalheiro. Ele então pegou seus mocassins de couro marrom e um usado chapéu de campanha; o chapéu estava começando a mostrar sua idade e isso era bom para seu papel. Por último, ele pegou o estojo de violão, essencial para completar o visual. Ele deixou o violão propriamente dito com seu pai enfermo. Dentro do estojo, ele levava apenas um livro amarelo, não muito maior que um maço de cartas. Pouco antes de sair, ele ainda ouviu seu pai dedilhando as cordas do violão e cantando junto com o rádio ao lado da sua cama.
Finalmente, ele pôs os pés na rua, no Harlem, Nova York de 1924. No apartamento, Charles Thomas Tester era apenas Charles, mas na rua todos o conheciam como Tommy Tester, sempre carregando um estojo de violão. Isso não era porque ele aspirava ser um músico; na verdade ele mal conseguia lembrar um punhado de músicas e sua voz era, no máximo, regular (para não dizer ruim). Seu pai, que ganhou a vida como operário de obras, e sua mãe, que passou a vida inteira trabalhando como doméstica, amavam música. Seu pai tocava violão muito bem e sua mãe era magnífica no piano, então era apenas natural que Tommy Tester terminaria se apresentando de alguma forma, sendo a única tragédia disso o fato de que ele não tinha um pingo de talento. Mas isso não o desanimava: Tommy via a si mesmo como um artista. Havia outros que o tinham chamado de trapaceiro e vigarista, mas ele nunca pensou de si mesmo assim; nenhum bom charlatão fez tal coisa algum dia.
Era com essa imagem que Tommy trabalhava. Com as roupas que escolheu, ele parecia um veterano e talentoso músico. Ele era um homem que chamava atenção e gostava disso, era útil, especialmente para um negro no Harlem. Ao mesmo tempo, o estojo de violão era um contraponto, uma garantia de que os brancos e os policiais o veriam apenas como um músico negro inofensivo e o ignorariam, o que o permitia transitar em relativa segurança tanto por Harlem e por Red Hook no Brooklyn quanto pelas vizinhanças brancas do Queens. Sua aparência e postura chamavam a atenção dos clientes certos, e ele se tornou conhecido por ser capaz de entregar qualquer coisa que lhe encomendassem, especialmente livros. Charles Thomas Tester conhece a magia que um terno pode conjurar, a invisibilidade que um estojo de violão confere, e a maldição escrita em sua pele que atraía a atenção dos brancos ricos e da polícia e esse conhecimento era sua defesa durante suas entregas.
Esse livro em particular prometia ser mais um trabalho simples com um bom pagamento: ele deveria entregá-lo à uma reclusa senhora no Queens que colecionava livros ocultos, mas Tommy acaba abrindo uma porta para um reino profundo e antigo de magia, e chama a atenção de seres que não deveriam ser incomodados. Uma tempestade está se formando, e Tom, quer queira ou não, está no centro dela.
Acho que deu para perceber, mas esse livro se passa em uma conturbada época dos Estados Unidos. Na primeira metade da década de 1920, o crescimento econômico motivado pela vitória na Primeira Guerra Mundial estava começando a mostrar sinais de declínio, e isso se refletia em todos os setores da sociedade. Ainda assim, inúmeros imigrantes visavam os EUA, chegando principalmente por Nova York. A cidade em si é composta por cinco burroughs - Manhattan, Queens, Bronx, Brooklyn e Staten Island - e cada um deles acabou acomodando grupos étnicos diferentes naquela época. Como comenta LaValle em determinado ponto do livro, as ruas do Harlem (um bairro de Manhattan) pareciam formigueiros, com negros chegando do Caribe e de países africanos e uma parte já bastante populosa da cidade se via ainda mais lotada.
"Walking through Harlem first thing in the morning was like being a single drop of blood inside an enourmous body that was waking up."
Fenômeno parecido ocorria no Brooklyn, especialmente em Red Hook, mas com imigrantes do oriente médio e norte da África. Apesar desse cenário de miscigenação social, a segregação racial estava no seu auge naquela época. Enquanto continuasse na sua vizinhança, Tommy Tester poderia caminhar orgulhoso, sem baixar o olhar para ninguém, mas se ousasse passar por lugares como Flushing Meadows, uma vizinhança inteiramente branca (não contarei os empregados, em sua maioria negros, porque eles não eram realmente vistos como pessoas por ali) no Queens, ele estaria arriscando a própria vida, e por isso fazia de tudo para não chamar a atenção nesses lugares.
"Becoming unremarkable, invisible, compliant - these were useful tricks for a black man in an all-white neighborhood. Survival Techniques."
Apenas esse cenário seria suficiente para uma história sólida, mas Victor LaValle entrelaçou algo mais nesse cenário. Nova York tornou-se um fervilhante caldeirão de crenças e costumes diferentes, magias diferentes, que pulsam no meio dos jovens arranha-céus, entrançando-se nas favelas e guetos, magia essa viva e visível para quem sabe que há algo mais no mundo do que os olhos conseguem ver inicialmente. Tommy percebe isso, meio com o canto do olho, por assim dizer, mas algumas pessoas com as quais ele cruza fazem mais do que isso, bem mais.
Ainda assim, em meio a esse panorama fantástico, sinistro e repleto de possibilidades, Tom tem que conviver com a brutalidade do estigma que a cor da sua pele se tornou; não é preconceito "apenas", mas um racismo genocida que infelizmente desponta muitas vezes ao longo da história dos EUA, e isso acaba se revelando muito pior que os mais terríveis pesadelos. LaValle constrói esse cenário de uma forma incrível, especialmente nos diálogos do livro. Tommy não é (apenas) um vigarista, trapaceiro ou charlatão, mas um sobrevivente.
"When he dressed in those frayed clothes and played at the blues man or the jazz man or even the docile Negro, he knew the role bestowed a kind of power upon him. Give people what they expect and you can take from them all that you need. They won?t realize you?ve juiced them until they?re dry. Ma Att had essentially paid him to deliver a worthless item, hadn?t she? If he had to play the role of quasi-gangster to get paid, than so be it. He played the roles needed to enrich his bank account. But all this would sound criminal to Otis. Or demeaning. The man had an outsized opinion of dignity. Nobility didn?t pay well enough to make Tommy want the job."
Esse pano de fundo histórico da uma firmeza incrível à história de Tommy Tester, especialmente quando se trata do livro que ele foi entregar, o "Supreme Alphabet", que é baseado em algo que realmente existe: um dos pilares da Five-Percent Nation, um movimento cultural e religioso com raízes no Islamismo que surgiu no Harlem em 1964.
Há outra coisa que talvez possa destacar aqui: Red Hook. Não sei se vocês o conhecem, mas esse bairro tem uma certa reputação literária, graças à H. P. Lovecraft. "The Horror at Red Hook" foi um conto escrito por Lovecraft em 1925 e é uma das suas histórias mais polêmicas, não tanto pelas ramificações (fascinantes, na minha opinião) que deu ao ?mito de Cthulhu?, mas pelas ideias extremamente xenofóbicas e racistas do autor. Victor LaValle fez essencialmente uma releitura desse conto e virou essa temática xenófoba de cabeça para baixo magnificamente!
Pode parecer pretensioso, mas "The Ballad of Black Tom" foi uma das melhores surpresas que já tive lendo um livro. Não só por tudo o que mencionei acima, mas pela incrível musicalidade da obra. Tom vive na Nova York da era do jazz e blues, e isso é perceptível nos mínimos detalhes; ele é essencialmente um blues man, com toda a bagagem histórica que esse termo e esse som carregam, e essa é sua balada, não há uma forma melhor de descrever esse livro.