Maria - Blog Pétalas de Liberdade 04/05/2017Resenha PREMIADA desse livro MARAVILHOSO para o blog Pétalas de Liberdade"Somente se tocarem um pedacinho de beleza é que poderão desejá-la. O inferno é o lugar em que o espaço para os desejos já está todo ocupado. Por isso, nele se faz o que é ordenado, de cabeça baixa." (página 50)
A história se passa nos anos noventa, em Palermo, cidade da região conhecida como Sicília, na Itália. Federico é um jovem de classe média, tem um irmão mais velho que estuda medicina, e mora com os pais. Aos dezessete anos, em seu último dia de aula, o professor de religião de sua escola, o querido 3P, padre Pino Puglisi (daí o apelido) lhe convida para ajudá-lo em seu projeto social. Como Dom Pino é um dos professores mais amados pelos estudantes, por sua cabeça aberta e sua proximidade com os alunos, Federico acaba aceitando ir até Brancaccio, o bairro na periferia da cidade, onde mora e trabalha o padre. Essa visita mudaria a forma como o rapaz via o mundo!
"Deus pôs um coração em seu peito, mas se esqueceu da couraça. É o que faz com todo rapaz; por isso, para todo rapaz, Deus é cruel.
O rapaz tem dezessete anos e a vida para inventar. Dezessete não promete boa ventura, até mesmo os atores são feios e não acreditam que vão ficar bonitos. O sangue é quente e, quando aperta o coração com força, obriga-nos a decidir o que fazer com ele.
Ele tem todas as perguntas, mas as respostas chegarão quando as tiver esquecido. Dezessete é um erro de cálculo temporal entre oferta e demanda." (página 12)
Federico era um garoto que ainda procurava seu lugar no mundo. Ele gostava de ler e de escrever, especialmente poesia, gostava de brincar com as palavras, de fugir do mundo real para o mundo das palavras. Brancaccio era um bairro pobre e dominado pela máfia italiana. As crianças que viviam ali levavam vidas muito mais difíceis e foi um choque para Federico perceber que, tão próximo de sua vida confortável, pessoas passavam por tantas carências. Dom Pino fazia o que podia, quando não estava dando aulas no colégio de Federico ou rezando missas, visita as família de Brancaccio e recebia as crianças no centro que criou, mas não era só no centro que ele cuidava deles, em qualquer lugar que encontrasse seus pequeninos na rua, sempre tinha um minuto para lhes dar atenção, para conversar com eles, responder suas perguntas ou apitar um jogo de futebol.
"A luz vai escurecendo e é substituída pela raiva de quem destrói e nem mesmo sabe por quê, de quem aprende a dominar antes de amar, de quem não sabe que amar acrescenta alguma coisa à vida, ao passo que odiar subtrai, mas odiar é mais fácil e imediato. É uma espécie de anestia que não permite que se sinta a vida e a luz. Muitos deles sofrem violência sexual por parte de garotos mais velhos, e assim acabam se habituando a se submeterem. E quem é dominado já não sabe como se faz para amar, porque também já não sabe como se faz para ser amado." (página 139)
Dom Pino acreditava que tudo o que aquelas crianças precisavam para saírem do inferno que era a vida em Brancaccio, era uma oportunidade. Uma oportunidade de conhecer uma vida diferente, de desejar uma vida diferente, onde pudessem estudar ao invés de roubar, onde pudessem brincar ao invés de agredir, onde pudessem sonhar com um trabalho digno que lhes pagasse suas necessidades.
"Dom Pino é um dom sem poder, mas não sem força. Uma força desarmada, não superior à violência - porquê a violência transforma a carne -, mas ulterior à violência - porque sua força transforma o coração. Supera-a, não no espaço, mas no tempo. Somente o tempo pode vencer o espaço. Há homens que dominam o espaço, e há homens que são senhores do tempo.
Dependem do deus que escolheram para se consagrar." (página 81)
Foi muito fácil relacionar a realidade de Brancaccio com a realidade que conhecemos. Basta pensar nas favelas dominadas pelo tráfico que se espalham pelo nosso país, ou até mesmo olhar para algumas comunidades da minha pequena cidade, ou observar alguns "alunos problemas" da escola onde faço estágio. Que futuro essas crianças com família desestruturadas, que não tem acesso a coisas básicas como alimentação, podem ter? Vou dar o meu próprio exemplo: após terminar o Ensino Médio, fiquei anos sem estudar, fechada na minha cidade minúscula, simplesmente por não saber como eu poderia fazer uma faculdade, mas quando me foi dado o acesso à essa informação, comecei a correr atrás, e hoje estou no último ano do curso de Pedagogia, eu só precisava de algo que me impulsionasse, que fizesse nascer em mim a vontade de aprender mais, e encontrei isso nos livros. Mas não basta só pensar sobre o assunto, é preciso fazer alguma coisa para quebrar o círculo vicioso de manutenção da pobreza, que agrada às organizações criminosas e alguns governantes. E é isso que Dom Pino fazia.
"Ele sabe que tem que fazer o contrário: olhar, ver, ser olhado, visto. Abertamente, de cabeça erguida. E não fazer de conta que não viu nada se o que viu deve ser mudado. O início do inferno é baixar o olhar, fechar os olhos, virar para o outro lado e reforçar a única fé espontânea que a Sicília conhece, que é aquela fatalista e cômoda do 'seja como for, nada vai mudar'. Sua paz se nutre dessa guerra contra o que é sempre igual, contra a ordem constituída, mantendo os olhos bem abertos. Quantas vezes não tem que repetir às suas crianças: de cabeça erguida, caminhem de cabeça erguida. Por essas ruas, quando alguns passam, outros baixam o olhar. A submissão ocular é regra de vida, Se você olha, está lançando um desafio. E ele olha todos no rosto e nos olhos." (página 81)
Eu quis ler "O que o inferno não é" por recentemente ter visto alguns comentário super positivos sobre outro livro do Alessandro D'Avenia: "Branca como o leite, vermelha como o sangue". No início da leitura, a alternância entre a narração em primeira pessoa feita por Federico e a narração em terceira pessoa focada em Dom Pino me confundiu um pouco, assim como a forma poética e italianizada da escrita do autor, mas aos poucos fui me acostumando com isso (aliás, parabenizo o trabalho de tradução que foi feito) e "O que o inferno não é" entrou para os meus favoritos e ganhou nota máxima em minha avaliação.
"Tinha a coragem que raramente vi nos adultos." (página 357, Federico sobre Dom Pino)
Com capítulos curtos, que proporcionam uma leitura fluida, é um livro que duvido que alguém consiga ler sem ser tocado. Conforme vamos vendo o quanto Dom Pino se dedica inteiramente para tornar o mundo melhor, mesmo que isso lhe custe sua saúde e sua segurança, mesmo que ele sinta que não tem mais forças, vamos querendo mudar o mundo também, refletimos sobre o que estamos fazendo com a nossa vida, sobre o poder que temos em nossas mãos de tornar a vida de alguém melhor ou pior. Pelo menos eu me senti assim. E só não chorei com os capítulos finais por não ter parado a leitura, por ter seguido para o próximo parágrafo.
"Todos os anos, em cada classe teve entre vinte e trinta estudantes. São quase dez mil os estudantes aos quais sorriu em quinze anos. E sabe o que pode fazer pelo menos um sorriso por semana na vida de um jovem. Nunca deixará o ensino. Talvez no fim da vida chegue a cem mil alunos. Dá para mudar uma nação com cem mil jovens. Mas também dez mil podem bastar para uma revolução. Todo professor é o potencial bélico mais perigoso de um Estado, fusão capaz de ativar reações atômicas insuspeitas." (página 191)
A edição traz uma capa feita sobre uma fotografia de um lugar real de Palermo, com elementos que tem tudo a ver com a história, como a boneca. Acreditem que ao vivo a capa é mais bonita que nas minhas fotografias. As páginas são amareladas, a diagramação é simples mas com letras, margens e espaçamento de bom tamanho, e devo ter encontrado no máximo um ou dois erros de revisão.
"Os rapazes sempre esperam alegria da vida, não sabem que é a vida que espera alegria deles." (página 12)
Federico e Lucia (uma jovem moradora de Brancaccio) me lembraram a Maddy e o Olly de "Tudo e todas as coisas" da Nicola Yoon, com o gosto que tem pela leitura, com suas cinco palavras favoritas. Em "O que o inferno não é", relembrei o que é um oximoro (figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão) e conheci Petrarca (poeta italiano conhecido como o inventor do soneto).
"(...) e onde se perde o olho, o coração também acaba enredado." (página 11)
"O que o inferno não é" é um livro que gostei muito e que recomendo. Se você puder adquiri-lo e/ou presentar alguém com ele, faça isso. Recomendo também que após a leitura da obra, se também ficar curioso como eu fiquei, pesquise um pouco sobre Brancaccio e o 3P, mas somente após a leitura, hein?! Você vai se surpreender! "O que o inferno não é" é um livro sobre encontrar seu lugar na vida, e que nos faz entender quando dizem que a educação pode mudar o mundo e qual o verdadeiro sentido de amar ao próximo.
"As coisas atingidas por muita luz projetam o mesmo tanto de sombra; toda luz tem seu luto; todo porto, seu naufrágio. Mas os jovens não veem a sombra, preferem ignorá-la." (página 11)
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