Andreia Santana 12/04/2024
'Sobre isso não sei dizer nada'
O nariz é uma sátira imortal que sempre vale revisitar ou conhecer. História pontuada pelo absurdo de uma situação insólita, um homem perder o próprio nariz, o conto une o burlesco à crítica social à Rússia imperial, com um tempero de fantasia nonsense.
A história de Nikolai Gógol começa quando o barbeiro Ivan Iákovlevitch, que costuma exagerar na bebida, encontra um nariz dentro do pão que sua mulher acabou de assar e que ele parte para o café da manhã.
Ao mesmo tempo, em outra área de São Petersburgo, onde a narrativa é ambientada, Kovaliov, inspetor colegial, um cargo civil correspondente ao de major, acorda sem o nariz. Onde o órgão deveria estar, compondo o rosto de bon vivant e conquistador do servidor público, resta um constrangedor e impossível vazio.
No decorrer da história, o leitor acompanha as tentativas desesperadas de Kovaliov para encontrar seu nariz perdido e, junto com ele, a dignidade de funcionário graduado e de bom partido para jovens aristocratas. O 'major' até vê seu nariz transformado em uma espécie de duplo bizarro, vestido com esmero como Conselheiro de Estado, um cargo maior que o do próprio Kovaliov, flanando pelas ruas São Petersburgo. Ele teme perder prestígio e posição social para esse 'concorrente'.
O nariz foi publicado pela primeira vez em 1836, na revista literária O contemporâneo, editada pelo poeta e dramaturgo Aleksandr Púchkin. O conto ironiza costumes, personagens e cargos da Rússia governada pelo imperador Nikolai Romanov. Principalmente, o autor brinca com a burocracia do Estado, impossível até mesmo na hora de se colocar um simples anúncio em um jornal.
A edição de 2022 da editora Antofágica traz uma apresentação da crítica literária Tamy Grannam (@literatamy), ilustrações de Nicolas Steinmetz (@nichosteinmetz) e posfácios assinados pelas professoras Raquel Toledo e Inti Queiroz, ambas da Universidade de São Paulo - USP. O texto também ganhou tradução nova, direto do russo, de Lucas Simone, doutor em Literatura e Cultura Russa também da USP.
O mais interessante nessa história cômica é que Gógol, na primeira metade do século XIX, já quebra a 'quarta parede', conversando diretamente com o leitor e afirmando que não tem detalhes de como o nariz desapareceu do rosto do dono e nem mesmo se de fato esse episódio ocorreu ou se foi mera invenção.
O leitor se deixa guiar pela história esdrúxula sem questionar a verossimilhança do caso, como se fizesse um pacto com o autor de que na seara do riso e do grotesco, as regras da realidade não se encaixam.
E, quando se tem Gógol, quem precisa da realidade?
Ficha Técnica:
O nariz
Autor: Nikolai Gógol
Ilustrador: Nicolas Steinmetz
Apresentação: Tamy Ghannam
Tradutor: Lucas Simone
Editora: Antofágica, 2022
160 páginas
R$ 55,17 (capa dura, na Amazon), para assinantes do Kindle Unlimited (19,90/mês o valor da assinatura) ou para ler gratuitamente mediante empréstimo na Biblion.app
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*Lido para o desafio #50livrosate50anos, brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até 30/04 e, se possível, resenhar ou fazer um breve comentário aqui no Skoob e no Instagram, sobre cada um deles. O nariz é o livro 36 do desafio. No total, até agora, 40 foram lidos, tem 10 na fila de leitura e quatro dos lidos aguarda postagem.
site: https://mardehistorias.wordpress.com/