Leila de Carvalho e Gonçalves 16/04/2021
O Riso Como Crítica Social
Nicholas Gógol (1809-1852) é um dos fundadores da literatura russa. Faz parte da chamada era de ouro, que abrange a primeira metade do século XIX, e sua obra distingue-se pela importância e influência que exerceu em proeminentes autores desse período, como Dostóievski, Tolstói, Turguêniev e Tchekhov.
Por sinal, a chave para compreendê-la está na complexa personalidade do escritor. Católico fervoroso, hipocondríaco e anoréxico, ele possivelmente morreu de inanição. Ao mesmo tempo, mantinha um difícil relacionamento com as mulheres, a ponto de jamais se casar, nem ter uma namorada (ou namorado), inclusive, o amor e a figura feminina aparecem relegados para segundo plano nos seus textos.
Se não bastasse, era sensível, uma critica valia mais do que mil elogios, e depressivo. Também tinha o péssimo hábito de incinerar seus manuscritos durante acessos raivosos. Salvos do fogo, estão a conhecida peça teatral "O Inspetor Geral", alguns romances e histórias curtas, entre as quais se sobressai "O Nariz".
Trata-se de um conto cômico-satírico que foi publicado originalmente em 1836, na revista Sovreménnik (O Contemporâneo), fundada e dirigida pelo escritor Aleksandr Pushkin. Tendo como cenário São Petersburgo, ele apresenta a história do ?major? Kovaliov, um certo assessor do colegiado, cujo Nariz resolveu abandonar seu rosto, para ter uma vida independente.
Essa é uma história na qual ?o invulgar torna-se estranhamente verosímil? e seu fulcro reside na maneira omissa de entender a realidade. Ao mesmo tempo, ela também traça uma severa crítica ao funcionalismo russo e remete a perda da identidade.
Em geral, é o nariz que dá identidade ao rosto de seu proprietário. Ainda mais se for proeminente e cheio de personalidade como o de Gógol, que costumava chamar a atenção de todos que o conheceram. Logo, é bem provável que essa particularidade seja a fonte de inspiração da narrativa.
Por outro lado, esse bizarro protagonista, que vai à igreja e desfila pela cidade com um uniforme oficial decorado com fios de ouro, deve ser entendido como um duplo bastante singular, pois a duplicidade se dá entre um homem e uma parte dele.
Esta inversão da lógica é uma teoria literária denominada ?carnavalização?, um conceito trabalhado pelo crítico e teórico de literatura soviético Mikhail Bakhtin cuja explicação está detalhada nos textos de Raquel de Toledo e Inty Anny Queiroz que fazem parte da Fortuna Crítica e, após a conclusão do conto, sugiro as leituras, pois redimensionam a compreensão de uma história que ?faz do riso uma crítica social?.
Finalizando, com apresentação de Tamy Ghannam, a Editora Antofágica mais uma vez entrega aos leitores uma impecável edição. A tradução de Lucas Simone é primorosa, por sinal, já conhecia seu trabalho, foi ele quem traduziu A Morte de Ivan Ilitch pela mesma editora. As ilustrações ? grotescas como a comicidade do conto mas amenizadas pela presença do rosa escuro ? são de Luciano Steinmetz e formam um belo e interessante conjunto cujas fotografias, postadas neste comentário, foram feitas no meu IPad com o aplicativo gratuito de leitura da Amazon.
Bom entretenimento!