Lilly Consuelo 30/06/2018
A passagem tensa dos corpos
Dividido em 156 capítulos em 256 páginas, esse romance é narrado em primeira pessoa, e seu tema principal é a morte. Seu interlocutor, sem identidade e incorpóreo, passa de cidade em cidade, contabilizando, averiguando e catalogando mortes, suas condições e causas. Segundo ele, um sujeito só pode ser considerado morto, quando assim é reconhecido, ou seja, velado e enterrado, propriamente dito. A cada um ou dois capítulos, o enredo é intercalado com o que parecem recortes de notícias de jornais, retiradas ao acaso e sem fazer questão de nomear os indivíduos, com os relatos dessas mortes. Em tal cidade, uma jovem morreu disso. Em outra, um senhor de idade morreu daquilo. E assim, de forma fria se dá a construção da narrativa.
Mesmo sabendo que são apenas dados e mais dados, através dessas interrupções entre os capítulos, a economia de descrição e o relato dessas mortes, o leitor é levado, penso que propositalmente, a uma situação de incômodo e tensão.
A estrutura do texto também é diferente do que jamais li. De forma bastante interessante, o autor mescla prosa e poesia, às vezes
interrompendo frases,
outras vezes seguindo a prosa em um novo parágrafo em letras minúsculas, sem perder o sentido da frase.
Apesar dos capítulos serem bem curtos, o emprego de palavras pomposas demais dentro do contexto e a construção de frases deixa o ritmo do livro um pouco mais lento.
Ao negar possuir uma experiência espiritual e se mostrar obcecado pela morte do personagem C., o narrador ganha pontos com o intenso suspense em torno do falecido que acompanha de perto.
Existe um estranho tratamento de mãe e filha ? que não vivem o luto e planejam às pressas o casamento desta segunda, que nem mesmo noivo possui. O filho, permanece recluso em seu quarto, e o narrador tenta adivinhar o que faz. Se foge do luto, se vive-o com intensidade, ou sequer sabe que sua irmã e sua mãe se recusam a sepultar seu patriarca e, ainda por cima, o deixam amarrado à uma cadeira na sala de jantar, convivendo diariamente, inclusive fazendo refeições juntos.
Enquanto o narrador mescla essa cena com sua história pessoal, o romance parece engrenar em um grande suspense mórbido e fantástico.
A passagem tensa dos corpos é recheada de ironia e humor negro, o que contrasta muito bem com o clima de suspense do enredo.
O narrador se diz incorpóreo e não dotado de um corpo físico, mas diz possuir língua. Através dela, lambendo apenas restos de comidas e bebidas deixadas pelas pessoas, é que se alimenta. Até o ato sexual para ele é resto, sua maior fantasia é lamber os fluidos da esposa de C.
Um dos fatores que mais me chamaram a atenção no livro, foi o emprego do duplo sentido da palavra língua. Não só usada para descrever a condição aparentemente física do narrador, mas esse vocábulo também expressa sua única forma de enunciação na história: o uso da palavra. ?O trabalho da língua é o que me mantém na passagem tensa de um corpo entre a morte, recolhendo dela o aspecto horrível, mas necessário e uma vida, sustentada pela palavra que com esforço produzi até aqui. Essa tem sido minha maneira de subsistir ainda que nenhum dos dizeres, até agora, tenha sido ouvido. Pelo movimento da língua engrossada e pela debilidade da voz assim se reconhece a enunciação do enforcado.?
?Terminado meu compromisso com C., do modo como me convém terminá-lo, esgotar-se-ão minha fala febril, minha existência em forma de língua e a narrativa que me sustenta.?
Ao mesmo tempo em que narra as mortes com indiferença, quando é confrontado com a situação estranha da família que não quer enterrar seu morto, o narrador começa a julgá-los com severidade, especialmente o filho, que teima em não sair do quarto.
A ansiedade do narrador se dá ao fato de que C. deveria ser seu último relato de mortes. No entanto, como a família ignora seu cadáver e não o reconhece como morto envenenado, o narrador se vê obrigado a conviver naquela casa, aguardando provas de que essa morte seja reconhecida. ?Até o momento, não consegui abandonar este estado
entre desaparecer completamente ou tornar-me um homem inteiro e visível
lugar intermediário onde estou, próximo dos vivos e dos mortos, a marcar com a língua a passagem tensa dos corpos. Talvez eu venha a concluir, um dia, que me acostumei a habitar entre, e que o sofrimento que disso decorre é apenas uma forma incomum de prazer.?
Por fim, A passagem tensa dos corpos é um romance curto, mas de forma alguma raso, que com certeza prende a atenção de seu leitor, tratando de um tema tão grandioso como a morte. O final é surpreendente, e deixa espaço para que seu leitor preencha também parte da história, o que penso ser essencial para o exercício da imaginação.