Penalux 07/03/2017
A arena mental de Bernardo Almeida: “Arresto” apresenta preocupações estéticas para um mundo sem respostas
Em A Palavra Muda, o filósofo francês Jacques Rancière crava a arte como uma pensamento fora de si: “É a manifestação de um pensamento todavia exterior, todavia escuro para si mesmo”, enigma do artista. Arresto, do escritor, jornalista e roteirista baiano Bernardo Almeida, ratifica a condição do poeta, no ínterim do conflito entre o verbo e a existência, como a manifestação de uma consciência a partir de uma ótica singular. Jogo de códigos.
Ao redor de 51 poemas, Arresto – de embargo, de medida preventiva que consiste na apreensão judicial dos bens do devedor, para garantir a futura cobrança da dívida – apresenta poéticas para um mundo distendido em performances midiáticas: “foder-te até enlouquecer / foder-te até esquecer o meu caralho / enterrado na sua boceta / para sempre.”
O corpo, o desejo e o gozo surgem aqui como campo de batalha, “seios são sinos / a fremir, badalar / na compressão da minha língua”, onde o monodrama se faz compartilhado, mas sob desconforto: “virilhas que se chocam e choram salivas gêmeas”. [A ansiedade do tempo contra as substâncias primárias.]
Sob conflito, Arresto – obra aberta – não é plenamente pessimista e convoca o leitor a uma elaboração da realidade em direção à fantasia. A poesia é o reconhecido território emancipado, com um certo compromisso com o chão primeiro, a matéria essencial do que é humano.
Há, portanto e de fato, uma tragédia surda por detrás de cada verso de Bernardo Almeida. Entre o luto particular pela morte do demônio e o açoite a deus, constrói-se um percurso de excessos e economias, num jogo dicotômico de viés contemporâneo, como no poema abaixo. (A ideia natimorta de ser contemporâneo, aliás.)
Fomos deixados à própria sorte...
Somos paixão em queda livre
fresta que nos revela
em dissimulação
entristecida,
fazes parte de uma era
reprimida;
representas o passado,
que também é de outro;
memória envernizada,
compartilhada,
batalhando o esquecimento
de uma história superada,
encolhida no subsolo
de nossa jornada
envelhecida
pelo reflexo contundente
de almas irmãs
em busca de
diferenciação
Os símbolos que determinam os fins e as saídas são importantes no processo poético de Almeida. O calvário, o coveiro, o cadáver e o canibalismo se somam à brevidade, ao silêncio como avesso do tumulto, à mutilação agônica.
Mesmo consciente da instabilidade da poesia para tempos de velocidade, o poeta irrompe e se enlaça com a exatidão do tempo não para se dobrar, mas ressignificar-se. São usuais os conceitos matemáticos, as normativas econômicas ou até mesmo construções delirantes ao plano da física: “teus olhos em fusão / com o infinito”.
No interstício de substâncias da natureza e da interpretação de dias apressados, o tempo, por fim, se coloca como elemento responsivo. Para o escritor francês Joseph de Maistre, o tempo é algo tão antinatural que não deseja outra coisa senão terminar. Ou seja, somos por ele determinados na pleura da vida atual: “O tempo corre acossado / pela buzina / de um caminhão / sem freio /na contramão”.
O poeta, saturado, não pode, acredita Almeida, perder o juízo. Precisa buscar o sentido, girar em delírio no labirinto cotidiano. Assim, Arresto apresenta um microcosmo reflexivo (na velha arena mental do poeta como tradutor).
Resenha por: Daniel Zanella