Toni 03/11/2020
The Call of Cthulhu and other weird stories [2011]
HP Lovecraft (EUA)
Penguin, 2011, 420p. 📖
Estou morando (temporariamente) na cidade onde nasceu e morreu Lovecraft [1890-1937], Providence, e tendo encontrado uma coletânea na casa para onde mudei em abril, pus-me a ler e reler alguns contos na expectativa romântico-ridícula de achar que clima, ruas, casas ou o silêncio cheio de ventos do lugar fizessem alguma diferença. (Não fizeram, claro). Lovecraft é considerado o grande “mestre” da literatura de terror do séc. XX, havendo cunhado um novo gênero fartamente representado nesta seleção, o horror cósmico: em suas histórias, personagens encontram criaturas, paisagens e dimensões impossíveis de serem explicadas dentro da lógica humana e, via de regra, acabam loucos, desaparecidos ou insalubremente cientes da própria insignificância diante do universo. 📖
Lançada em 2011, a presente edição peca, no entanto, por optar não tocar na “ferida” de Lovecraft. Nem o prefácio, nem os contos escolhidos, nem as muitas notas explicativas mencionam o racismo, a homofobia ou o anti-semitismo do autor (mais presentes em suas cartas, é verdade, mas ainda detectável na ficção). A omissão, infelizmente, não surpreende: tanto fortuna crítica quanto leitores ainda não aprenderam a lidar com aquele conflito moral-estético entre bom-autor & mau-ser-humano. Via de regra, as opções são extremas: 1) negligenciar os “indícios” de preconceito sob alegação de que uma “falha de caráter” não pode invalidar a importância da obra literária; ou 2) dar entrada no processo de cancelamento da pessoa sob escrutínio e promover linchamento virtual de quem quer que defenda sua obra. 📖
Ambas as opções pouco satisfazem porque uma e outra promovem formas de apagamento, seja do problema na obra ou do autor problemático (ignorar um escritor homofóbico não contribui para o fim da homofobia; apontar e condenar a homofobia cada vez que sua obra ou seu nome vierem à tona, talvez sim). É um trabalho chato? É — mas acredite, muito mais "chato" é ter a cor da sua pele associada a uma "raça inferior", ou sua orientação sexual taxada de abominação.
É preciso, portanto, que leitores não separem fruição de ética e que a crítica trabalhe sem fazer vistas grossas (nesses casos, os partidários da "literatura pela literatura" são os primeiros a defendê-la dizendo que o texto é fruto de seu tempo). Paralelo ao trabalho não-cínico de críticos e leitores, a produção cultural deve revisitá-lo no sentido mais profundo e desejável do que uma adaptação deve ser: alterando e subvertendo a obra original e atenta às demandas do presente, ou seja, trazendo, por ex., o protagonismo negro ou LGBTQI e corrigindo aquelas "falhas de caráter" que são, na realidade, o verdadeiro terror cósmico deste mundo.
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O que não é possível, ou aceitável, é insistir numa apreciação inconsequente ou, pior, na pura celebração do escritor. Imaginem vocês, em 2011 a escritora estadunidense/nigeriana Nnedi Okorafor recebeu o World Fantasy Award de melhor romance. O troféu? Um busto de Lovecraft. Após a premiação, Okorafor (mulher negra) declarou: "Uma estatueta desse homem racista encontra-se em minha casa. Uma estatueta desse homem racista é uma das maiores honrarias que recebi como escritora". (O troféu foi modificado desde 2016 e agora representa uma árvore retorcida sob o luar). Como disse Hannah Gadsby, hindsight is a gift (olhar para trás é um dom), não deveríamos desperdiçá-lo. Seja você do time que não consegue mais ler ou apreciar obras de artistas misóginos, racistas e/ou lgbtqifóbicos, seja você adepto de uma leitura crítica sem espaço para desculpas como "naquela-época-as-pessoas-eram-assim-mesmo", o que importa é manter-se atento a discursos e práticas que pretendem justificar arte sem ética, literatura sem mundo, leitura sem responsabilidade.