Krishnamurti 29/03/2017
JOSÉ EDUARDO DEGRAZIA E SUA MÚLTIPLA POESIA
JOSÉ EDUARDO DEGRAZIA E SUA MÚLTIPLA POESIA
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
A fúria de escrever novamente me invade porque a vida
se esconde em lugares não sabidos e para encontrá-la
eu preciso de palavras e por isso a máquina não pára.
José Eduardo Degrazia
Este é um dos pequenos poemas (A fúria de escrever), reunidos pelo escritor José Eduardo Degrazia e inseridos em seu mais recente livro: "Lições de Geometria Fantástica"-Poesias. Uma resenha sobre autor como Degrazia, ficaria a desejar se não fizéssemos uma brevíssima apresentação de sua obra - tendo em vista e com tristeza, a pouca repercussão que autores de longa navegação na literatura ainda sofrem no Brasil.
Este gaucho de Porto Alegre (1954), tem no currículo nada menos que 19 livros editados em vários gêneros (contos, poesia, novela e infanto-juvenil). É tradutor de 14 outros, dentre eles 7 de Pablo Neruda, e complementa seu currículo com vários prêmios literários no Brasil e no exterior. É muito.
Outra questão digna de registro, e essa relacionada ao livro "Lições de Geometria Fantástica", é a pequena nota introdutória do próprio autor que nos deixa entrever de quando vem sua atividade literária, além de suas inquietações estéticas, existenciais e políticas. Afirma ele que das duas partes em que o livro está dividido, a primeira "Lições de Geometria Fantástica foi composta durante os anos de 1960 e 2016 (observem o arco de tempo que envolve 56 anos).
A segunda parte intitulada "O jogo", foi escrita no início dos anos 1980. Ampliamos a explicação de Degrazia. A leitura desta primeira parte nos deixa entrever, de certa forma, e de maneira condensada, sua formação como poeta. O autor afirma tratar-se de poemas experimentais, lúdicos, conceituais. Sim, por certo, mas não é tão só e simples assim. Em meio a uma grande variedade temática (exposta nos 66 poemas reunidos nesta primeira parte), encontramos poemas com o uso de paralelismos visuais e semânticos. Noutros serve-se o bardo da linguagem sonora plasmada em aliterações (repetições de fonemas idênticos ou parecidos nas palavras ou no mesmo verso). Aprimora a forma de outros ainda, urdindo-os cuidadosamente em peças breves, concisas, contundentes. Continua sua "fúria" poética em escavar significados na construção de palavras dentro de outras palavras e finalmente e em suma, faz-nos sentir dentro de uma verdadeira roda viva poética, onde o lúdico sempre aflora. Eis-nos diante de um grande artífice da palavra a fabricar uma poética que não exclui a reflexão e a inteligência. Um único exemplo de sua versatilidade:
A reinvenção dos deuses
1
Os deuses estão incertos / de sua medida exata.
2
Os deuses expandiram-se / para os confins do espaço.
3
Os deuses implodiram-se silenciosamente.
4
Os deuses mudaram-se / para buracos negros.
5
Os deuses mastigam estrelas / novas e rabos-de-foguetes.
6
Os deuses rolaram a dívida / de seus milagres.
7
Os deuses arquivaram-se em disquetes da Microsoft.
8
Os deuses exilaram-se em fitas de VT.
9
Os deuses não têm meias / medidas nem sapatos.
10
Os deuses revivem nos homens / que os reinventam.
A segunda parte da obra contém 13 poemas apenas. Estes, longos e trabalhados de forma a constituírem a sedimentação de elevada elaboração literária. Aquilo que faz de Degrazia um mestre de aguçado sentimento humano, e uma das vozes mais expressivas da vigorosa literatura brasileira contemporânea - com a devida vênia dos derrotistas de plantão e dos que acreditam piamente que depois de fulano, beltrano e sicrano nada mais pode ser feito de excepcional. Extremamente difícil escolher um. Todos excelentes... Afinal transcrevemos um para deleite do leitor. E mais não é preciso dizer, a não ser rogar especial atenção na leitura:
Bebo o poema
Poderia dizer a palavra
se a tivesse nas mãos
Cálice
de
vinho.
As palavras são o cristal do mundo.
O poema
cálice que se quebra
contra o muro da vida?
Faço o poema para os vidraceiros
para os motoristas de caminhão
o poema é forma
frágil
e viagem
O poema quem o carrega nas mãos?
Levo o poema
cálice de vinho
recém-saído
do barril.
Bebo o vinho.
Bebo o poema.
Livro: "Lições de geometria fantástica" - Poesia, de José Eduardo Degrazia, Editora Penalux, Guaratinguetá - SP, 2016, 188p.
ISBN 978-85-5833-139-5