Veneza

Veneza Alberto Lins Caldas




Resenhas - Veneza


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Krishnamurti 16/04/2017

PESADELOS INTERIORES EM "VENEZA". REPETECO DA RESENHA DE UM BELÍSSIMO LIVRO DE AUTOR BRASILEIRO, SÓ PARA LEMBRAR AOS INCAUTOS QUE EXISTE SIM A LITERATURA BRASILEIRA. É FORTE E PUNGENTE, A DESPEITO DE TANTO DESCASO NOSSO.
“Estava em Veneza e me sentia um pequeno Deus. Mas acordei estranho naquela manhã, sem saber ou intuir os infortúnios e desgraças que me tornariam outro homem”. Assim Alberto Lins Caldas abre seu mais novo romance “Veneza” publicado pela Editora Penalux. Conta-nos a saga existencial de um certo cavalheiro francês, Pierre Bourdon que viveu em algum instante do século XVII ou XVIII (tempo incerto), e alternou moradia entre a “teatral” cidade de Veneza e algum local paradisíaco do Novo Mundo, provavelmente uma cidade do litoral brasileiro ( espaço incerto). O mistério que envolve essa existência se estabelece e inquieta o leitor logo na Introdução, ao sabermos da descoberta de um manuscrito antigo encontrado no Arquivo Público de “alguma cidade”, e que apresenta as tais memórias de Bourdon.
O sujeito é um simpático bon vivant. Vida fácil, boas roupas, criadagem, mesa farta e cama farta também, que partilha com mulheres casadas, até o dia em que um marido traído o flagra. A morte iminente seria um aviso do destino quanto à vida devassa e irresponsável? Não esperou para saber. Entre ser espetado na ponta de uma espada ou fugir às pressas, escolheu enfrentar mares bravios em companhia de seu fiel escudeiro, um ex-escravo com status de servo, o “mouro”. Eis a trama delineada.
Alberto Lins Caldas nos apresenta uma narrativa ágil, caprichosa, digressiva e estruturada em capítulos relativamente curtos, aparentemente arbitrários que em idas e vindas, toma atalhos, apaga a linha reta das conexões para reatá-las mais adiante. Bourdon se encaixa nesse fluxo narrativo e se depara com o inusitado e selvagem mundo “fora” de Veneza, e aos poucos vão ocorrendo significativos momentos de um processo de tomada de consciência da personalidade que se vê em profundo conflito existencial:
“Deitado no meu catre comecei a pensar em tudo aquilo, em minha fraqueza diante da vida, em minha estúpida juventude, no despreparo dos meus sentidos. Como se até ali tivesse vivido no colo de minha mãe, tivesse vivido numa redoma sem ver que o mundo era maior que aquele escolhido para mim e até mesmo escolhido por mim”. Livro 2 – A ilha.
A criatura invectiva contra tudo e todos:
“Tornara-se impossível aceitar um universo movido pela ignorância, pelo sofrimento, pelo abandono, pelo cego acaso do descaso e pela morte – e tivesse um criador, eternamente mudo e distante, vendo seus filhos se asfixiarem no vômito, na merda e no sangue: sem se mover para salvá-los! E o Mal me fez gritar num frenesi sem remédio, enquanto o barco deixava, aos poucos, tudo aquilo para trás”. Livro 2 – A ilha.
Mas o sujeito não se emenda fácil, se por um lado questiona valores morais, por outro é evidente sua complacência maior com as manifestações meramente instintivas do ser. Observe-se na transcrição a seguir o estilo peculiar do autor:
“... desejo satisfeito antes do gozo; e nos deliciávamos à exaustão, como se aquilo fosse a vida e não o inesperado vestíbulo do Mal; e me vem aos borbotões cada sensação como se um mundo desgovernado e sem sentido desabasse por nada, em minha cabeça.” Livro 4 – Retirada.
Ele sabe, e se dá conta, de que a alma é a razão e a consciência, nos sentidos psicológico e moral. A besta que habita o homem, seus instintos. Ao longo dos acontecimentos e incidentes (alguns divertidos, quase tragicômicos, como aquele que a propósito de uma visita em um engenho de açúcar a dupla termina indo parar numa celebração de culto afro, ou macumba ou lá que nome tenha), ocorre a constatação de que as relações entre ambos (alma e besta) são mesmo complicadas e, muito pior se nisso estiver implicado algum rabo de saia... Meteu-se em novas aventuras adúlteras. Assim o cavalheiro francês. Sempre no limite, em situações psicológicas, éticas e morais conflituosas que não encontram saída digna. Sempre a despertar o lado monstruoso do ser:
“... esse monstro feito de mim e dos outros tantos da minha vida me traz ao coração o mais puro Mal. Viro-me, fujo, cuspo no chão e saio correndo de mim mesmo e seus tentáculos.”
Atualíssimo não? Sempre as bestas a despertar furiosas. Duelo, mortes, torturas e toda a gama de infelicidades que em vida nos habituamos a praticar:
“Durante o retorno pensei em como nos transformamos, de um momento para o outro, de seres polidos, corteses, atenciosos e civilizados, em animais no entredevorar sem fim”. Livro 4 – Duelo.
Incerto o tempo, incerto o espaço, duvidosa a nossa divinizada razão. Que fizemos de nós? Veneza é um romance na melhor tradição das obras envolvendo “viajantes” que autores como Laurence Stern, Xavier de Maistre e Almeida Garret dentre outros, nos legaram. No melhor da tradição dissemos porque, assim também como o Brás Cubas de Machado de Assis que viajou “à roda da vida”, o Pierre Bourdon de Lins Caldas viaja para dentro de si, amplia horizontes deste nosso absurdo e monstruoso século XXI a sugerir que as coisas podem ser vistas por mil perspectivas diferentes e podem se apresentar antagônicas a outras posições. Uma literatura corrosiva a demolir certezas engendradas pela nossa débil razão.
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Penalux 17/03/2017

PESADELOS INTERIORES
Por Krishnamurti Góes dos Anjos

“Estava em Veneza e me sentia um pequeno Deus. Mas acordei estranho naquela manhã, sem saber ou intuir os infortúnios e desgraças que me tornariam outro homem”. Assim Alberto Lins Caldas abre seu mais novo romance “Veneza” publicado pela Editora Penalux. Conta-nos a saga existencial de um certo cavalheiro francês, Pierre Bourdon que viveu em algum instante do século XVII ou XVIII (tempo incerto), e alternou moradia entre a “teatral” cidade de Veneza e algum local paradisíaco do Novo Mundo, provavelmente uma cidade do litoral brasileiro ( espaço incerto). O mistério que envolve essa existência se estabelece e inquieta o leitor logo na Introdução, ao sabermos da descoberta de um manuscrito antigo encontrado no Arquivo Público de “alguma cidade”, e que apresenta as tais memórias de Bourdon.
O sujeito é um simpático bon vivant. Vida fácil, boas roupas, criadagem, mesa farta e cama farta também, que partilha com mulheres casadas, até o dia em que um marido traído o flagra. A morte iminente seria um aviso do destino quanto à vida devassa e irresponsável? Não esperou para saber. Entre ser espetado na ponta de uma espada ou fugir às pressas, escolheu enfrentar mares bravios em companhia de seu fiel escudeiro, um ex-escravo com status de servo, o “mouro”. Eis a trama delineada.
Alberto Lins Caldas nos apresenta uma narrativa ágil, caprichosa, digressiva e estruturada em capítulos relativamente curtos, aparentemente arbitrários que em idas e vindas, toma atalhos, apaga a linha reta das conexões para reatá-las mais adiante. Bourdon se encaixa nesse fluxo narrativo e se depara com o inusitado e selvagem mundo “fora” de Veneza, e aos poucos vão ocorrendo significativos momentos de um processo de tomada de consciência da personalidade que se vê em profundo conflito existencial:
“Deitado no meu catre comecei a pensar em tudo aquilo, em minha fraqueza diante da vida, em minha estúpida juventude, no despreparo dos meus sentidos. Como se até ali tivesse vivido no colo de minha mãe, tivesse vivido numa redoma sem ver que o mundo era maior que aquele escolhido para mim e até mesmo escolhido por mim”. Livro 2 – A ilha.
A criatura invectiva contra tudo e todos:
“Tornara-se impossível aceitar um universo movido pela ignorância, pelo sofrimento, pelo abandono, pelo cego acaso do descaso e pela morte – e tivesse um criador, eternamente mudo e distante, vendo seus filhos se asfixiarem no vômito, na merda e no sangue: sem se mover para salvá-los! E o Mal me fez gritar num frenesi sem remédio, enquanto o barco deixava, aos poucos, tudo aquilo para trás”. Livro 2 – A ilha.
Mas o sujeito não se emenda fácil, se por um lado questiona valores morais, por outro é evidente sua complacência maior com as manifestações meramente instintivas do ser. Observe-se na transcrição a seguir o estilo peculiar do autor:
“... desejo satisfeito antes do gozo; e nos deliciávamos à exaustão, como se aquilo fosse a vida e não o inesperado vestíbulo do Mal; e me vem aos borbotões cada sensação como se um mundo desgovernado e sem sentido desabasse por nada, em minha cabeça.” Livro 4 – Retirada.
Ele sabe, e se dá conta, de que a alma é a razão e a consciência, nos sentidos psicológico e moral. A besta que habita o homem, seus instintos. Ao longo dos acontecimentos e incidentes (alguns divertidos, quase tragicômicos, como aquele que a propósito de uma visita em um engenho de açúcar a dupla termina indo parar numa celebração de culto afro, ou macumba ou lá que nome tenha), ocorre a constatação de que as relações entre ambos (alma e besta) são mesmo complicadas e, muito pior se nisso estiver implicado algum rabo de saia... Meteu-se em novas aventuras adúlteras. Assim o cavalheiro francês. Sempre no limite, em situações psicológicas, éticas e morais conflituosas que não encontram saída digna. Sempre a despertar o lado monstruoso do ser:
“... esse monstro feito de mim e dos outros tantos da minha vida me traz ao coração o mais puro Mal. Viro-me, fujo, cuspo no chão e saio correndo de mim mesmo e seus tentáculos.”
Atualíssimo não? Sempre as bestas a despertar furiosas. Duelo, mortes, torturas e toda a gama de infelicidades que em vida nos habituamos a praticar:
“Durante o retorno pensei em como nos transformamos, de um momento para o outro, de seres polidos, corteses, atenciosos e civilizados, em animais no entredevorar sem fim”. Livro 4 – Duelo.
Incerto o tempo, incerto o espaço, duvidosa a nossa divinizada razão. Que fizemos de nós? Veneza é um romance na melhor tradição das obras envolvendo “viajantes” que autores como Laurence Stern, Xavier de Maistre e Almeida Garret dentre outros, nos legaram. No melhor da tradição dissemos porque, assim também como o Brás Cubas de Machado de Assis que viajou “à roda da vida”, o Pierre Bourdon de Lins Caldas viaja para dentro de si, amplia horizontes deste nosso absurdo e monstruoso século XXI a sugerir que as coisas podem ser vistas por mil perspectivas diferentes e podem se apresentar antagônicas a outras posições. Uma literatura corrosiva a demolir certezas engendradas pela nossa débil razão.

Dezembro/2016.
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