Ladyce 21/05/2011
Uma história triste e verdadeira
Quando eu ainda morava nos Estados Unidos, fiz amizade com um casal judeu iraniano. Quando os conheci, a minha ignorância sobre o Irã e sua população era tão grande que não pude esconder a minha surpresa ao aprender que no Irã da época do Xá, havia uma grande comunidade judaica, a maior no Oriente Médio fora de Israel. Naqueles anos, o Aiatolá Khomeini já havia se cansado de requisitar a cabeça do escritor Salman Rushdie pelo livro VERSOS SATÂNICOS! Levando isso em conta, simplesmente assumi que a maioria dos judeus persas houvesse emigrado. No entanto, para escrever a resenha do livro que acabo de ler, busquei informações na rede e me surpreendi, uma vez mais, ao saber que ainda há uma pequena e devota comunidade judia na capital, Teerã. A mim, parecia improvável que houvesse tolerância no mundo xiita aos judeus, principalmente no Irã, que nas últimas décadas não tem sido visto como um país particularmente aberto a opiniões que diferem do conservadorismo xiita. Abordo esse assunto porque as famílias dos personagens centrais do livro CHUVA DOURADA, de Gina B. Nahai [Ediouro: 2007], pertencem a famílias judias, residentes no Teerã, e suas histórias se passam nos anos imediatamente anteriores à revolução que depôs o Xá da Pérsia.
Este foi um romance que me deixou silenciosa e pensativa. Acabei de ler suas 332 páginas em dois dias e passei a tarde e a noite do último dia, após fechar o último parágrafo, tendo que considerar a potência dos preconceitos contra mulheres, que também afetam os homens. Preconceitos arraigados por religiões e culturas milenares limitam, cerceiam, podam e contorcem os espíritos ricos, as mentes empreendedoras, os gritos rebeldes das almas que precisam se expressar. De particular amargor é ver mais uma vez o retrato da discriminação contra a mulher. Este é um assunto que me cala. Mas ainda é difícil imaginar o rancor que mulheres como Bahar [nome que em farsi significa Primavera], personagem principal da trama, trazem dentro de si, encobrindo como um manto todos os desejos de crescimento emocional e educacional a que aspiram e que preconceitos variados lhes tolhem, a todo momento, o simples ato de viver bem ou dignamente. Inadvertidamente, essas mulheres, passam para suas filhas, para a próxima geração, os mesmos traumas com que cresceram, repetindo numa cadeia infinita, as pragas de se ter uma filha mulher, a tristeza de não se ter um filho homem. Perpetuam assim a injustiça que sofreram e da qual não conseguiram se libertar.
A história de Bahar, tenho certeza, não é única. Nem é simplesmente um excesso da imaginação de uma iraniana que se libertou e emigrou para os EUA, como aconteceu com a autora. Aos 17 anos Bahar encontra Omid [ cujo nome em farsi significa Esperança]. Ela é de uma família judia pobre. Ele de uma família judia rica. Eles se casam contra a vontade da família dele. E o que deveria ter-se tornado um conto de amor, passa a ser uma história de abuso, de preconceito, de tortura, não dos agentes que poderíamos esperar, mas da sociedade, da cultura, do círculo familiar. Omid logo encontra o amor de sua vida, uma mulher muçulmana, livre, amante de um outro homem. E por sua própria inabilidade de administrar a vida, os sentimentos e o mundo em que vive, só piora a situação em casa, em seu próprio casamento. Mais uma calamidade aflige o casal, e principalmente Bahar, eles têm uma filha com surdez progressiva. A já depauperada, oprimida Bahar, agora sofre duplamente, não só é mulher e teve uma única filha, também mulher, mas esta filha não preenche todos os requerimentos necessários, pois não é “perfeita”.
CHUVA DOURADA não é um romance leve, cheio de momentos bucólicos. Muito pelo contrário. É uma história triste e fascinante, de um mundo que – aqui no ocidente, numa cultura de inclusão como a nossa – parece pertencer a um tempo cravado nos primeiros séculos da Idade Média, cuja realidade custamos a acreditar co-habite com a nossa, dia a dia, ano a ano. Muito bem narrada, a autora não poupa ao leitor o sofrimento de Bahar e de todas as mulheres nela representadas. Este é um romance sobre expectativas nunca alcançadas.
Recomendo esse livro. Com todas as cinco estreles que me dão. Estou emprestando meu volume a todos os amigos que gostam de boa literatura. E também porque não posso deixar de tentar abrir os olhos, sempre que possível, para o problema da discriminação contra a mulher. Vá ler CHUVA DOURADA. Não é leve. Mas vale todas as palavras nele escritas.
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NOTA:
Há horas em que tenho a impressão de que não há ninguém no comando das nossas editoras. É impressionante a falta de cuidado com os livros aqui impressos. No caso deste livro, de Gina B. Nahai a pergunta que não cala é: Quem foi que deu a este romance o título de CHUVA DOURADA? Procure pelo título na internet e verá o que qualquer pessoa com um pouco mais de conhecimento percebe: esta é a expressão usada para a urofilia, ou seja para a prática sexual em que a urina está envolvida. Alguém dormiu no volante… É simplesmente inacreditável! O título no original em inglês é “Caspian Rain”. “Caspian” se refere ao Mar Cáspio. No romance a palavra “Caspian” está associada à cor do Mar Cáspio… Por que então não evitar a infeliz conotação implicada no título em português? Ei, onde estava o editor? Onde estavam as cabeças pensantes da Ediouro? O livro não chegou às livrarias com esse título sem a aprovação de alguém… Provavelmente muitos alguéns...