Glauber Rocha esse vulcão

Glauber Rocha esse vulcão João Carlos Texeira Gomes




Resenhas - Glauber Rocha esse vulcão


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Brunífero 28/03/2022

Eterna supernova
Esse tipo de experiência é rara, mas parece sempre assombrosa: você já imaginou alguém provocador, imaginativo e que parece nunca esgotar o que tem a dizer? Não vou dissertar aqui da razão de ser (se é que existe) dessa figura ou porque parece tão rara. Quero me ater apenas a esse fulgor humano de criação, que parece atrair qualquer um que se aproxima. Essa é a imagem que se consagrou o cineasta baiano Glauber Rocha, criador do Cinema Novo, o mais importante movimento cinematográfico brasileiro. Reconhecível apenas pelo primeiro nome, Glauber é reconhecido, mas não realmente conhecido. Minha primeira experiência com sua filmografia foi com Deus e o Diabo na Terra do Sol em 2019, 55 anos depois de seu lançamento. Meu eu de 17-18 anos da época descreveria o filme como 50% de simbolismo nordestino, 30% de referências históricas que Glauber espera que você entenda, e 20% de pura arte. Terra em Transe, o filme seguinte o qual vi pouco depois, acabou sendo (ainda é) uma experiência pesada graças à presença de um psicopata no poder. Mas mesmo acompanhada da incompreensão (não chamaria de hermetismo) ou do pessimismo, os dois filmes tinham uma capacidade poucas vezes vistas no cinema de envolver o espectador graças a uma conjunção de fatores - as incríveis atuações do elenco, a direção fragmentada, corrida de momentos-chave, o uso da música... "Seus filmes eram extraordinariamente poderosos", segundo Martin Scorsese, que admitiu não entender a política por detrás deles quando os viu pela primeira vez, o que não é um feito fácil. No mundo da arte, existem artistas que se saem melhor com mais ou menos contexto por detrás de suas obras, e Glauber está dividido - seus filmes são hipnotizantes, mas parecem necessitar de um livro de História do Brasil e um livro teórico de cinema para serem compreendidos em algum nível. Por sorte, no mar do que já disse sobre Glauber, um peixe grande pode ser pescado: uma biografia/estudo crítico de seu amigo de juventude, o jornalista, professor e imortal pela Academia de Letras Baiana João Carlos Teixeira Gomes.
Longe de ser imparcial, João Carlos admite logo de cara a profunda ligação não apenas afetiva, mas geracional com Glauber. O autor afirma que seu período de formação, nas melhores escolas públicas de Salvador, partilha de grande coerência (ou quase) nos gostos estéticos, políticos e profissionais daqueles jovens de fins dos anos 50, em um estado definido pelo escritor como ainda muito atrasado culturalmente, a despeito de grandes contribuições ao país. O capítulo em que relembra o período de maturação de Glauber, de tão íntimo, se assemelha a uma crônica da capital da Bahia em fins dos anos 50, e uma bastante fotográfica, por sinal, de tão bem escrita. A partir daqui, porém, João Carlos se distancia mais e mais de Glauber, e o livro passa a ganhar tons de romance.
A organização dos capítulos do livro não é feita por ordem cronológica, mas sim temática, que por acaso acaba por se alinhar à progressão na vida de Glauber Rocha. Cada traço de sua personalidade, evolução artística e comportamento político é desenvolvida com calma e cautela - o autor dispõe de grande documentação em jornais, periódicos, registros audiovisuais e documentos pessoais guardados no Tempo Glauber** para embasar cada frase do que diz. É aí que se mesclam a narrativa biográfica e o estudo das obras de Glauber. Há um espaço dedicado a entender as ideias por trás dos filmes, outro para entender os métodos de atuação, outro para ver a produção teórica, posições políticas, etc. Em outro lado, há a vida pessoal de Glauber, detalhes da infância, da vida amorosa, do contato com os outros cineastas do Cinema Novo, etc. Tudo isso conflui muito bem, e consegue enriquecer, e muito, a percepção sobre Glauber, seu cinema e sua (pouco lida) obra teórica. Acho até que se o Maurílio tivesse lido esse livro, teria demorado só uma semana pra entender Glauber inteiro, e não 4 anos pra cada filme *-*
Por sinal, ter lembrado desse episódio do Choque de Cultura me levou a um questionamento bem importante: qual o legado de Glauber na cultura brasileira de hoje? O livro não leva esse questionamento à cabo; entre estudos e frios e lembranças calorosas, Teixeira Gomes dá pouco espaço para avaliar a presença de Glauber no Brasil. Apesar da tradição do Cinema Novo ser reconhecida internacionalmente e ter germinado no cinema brasileiro, é admitido no livro que os filmes de Glauber nunca tiveram popularidade real para fora da esquerda e de estratos intelectuais/artísticos da classe média, e mesmo assim com ressalvas - é lembrada, por exemplo, a infame briga do diretor com o Festival de Veneza em 1980, na ocasião da recepção de seu último filme, A Idade da Terra. Não conseguiria chegar a uma conclusão em um mero texto de crítica, mas se pudesse chutar, diria que é um legado contraditório. Glauber morreu de forma súbita no auge da carreira, e provocou em muito de seus correligionários essa familiar sensação de "essa pessoa não pode morrer nunca", junto de um irrepreensível pessimismo, representado no discurso de Darcy Ribeiro no funeral do amigo. Lendo as opiniões fortes e nem sempre precisas do diretor com ar de teórico do Brasil, é possível se voltar ao exercício de "o que faria Glauber?". Se tivesse chegado vivo aos tempos atuais, porém, seria difícil prever onde ia estar - não seria mais de esquerda, ou teria se radicalizado ainda mais? Estaria na Europa, ou no Brasil? Estaria na institucionalidade, ou por si só? Seria um saudosista de sua formação artística, ou um dos maiores TikTokers do Brasil, como chutou Julinho da Van??? Essa última, ainda que seja uma piada, me soa não-ironicamente factível em um futuro alternativo em que Glauber não tem a piora repentina de saúde naqueles meados de 1981. Claro que essas são previsões otimistas. Em vários momentos da montanha-russa Glauber, me soou que parte da fama permanece porque morreu ainda jovem. Ser um vulcão não traz somente insights brilhantes da formação do Western Americano, mas erros grotescos de análise política, como comparar Golbery do Couto e Silva a Darcy Ribeiro (!!!!). Mas qual vida, qual real sensibilidade não traz junto de si vantagens e desvantagens?
Glauber, e seu amigo nota isso, entendia os rumos que ele deu à sua vida, e conseguiu aproveitar parte dela, ainda que não soubesse lidar com o seu lado negativo. Como uma boa biografia, porém, essa é só uma faceta da história. Teixeira Gomes, mestre da escrita, também fornece inúmeras facetas do ser humano Glauber, e isso é de grande valor. Mas além da mera complexidade, eu percebi uma coisa. Ler esse livro me remeteu à sensação de tentar prever ações de pessoas próximas.
Quando era criança, notei bem rápido que, se eu prestasse bastante atenção em como os adultos se comportavam, conseguiria prevê-los em todas as próximas situações em que os encontrasse - pelo menos no contexto em que os encontrava usualmente, como uma sala de aula. Todavia, o mesmo não se aplicava às crianças, e isso me deixava espantado. Só anos mais tarde, já em um contexto de terapia e novas experiências, entendi que o que entedia como "imprevisibilidade" era, na verdade, testemunhar a formação da criança e a falta de tato dela com o mundo ao seu redor. Por diversas situações pessoais, essa dificuldade se tornou um motivo de estresse nessa convivência. Ler sobre Glauber me fez sentir isso, mas pela primeira vez, de uma forma boa. Ficava sempre à espera da próxima cartada, que nunca era o que parecia. O autor, até pela proximidade com Rocha em um momento de formação, consegue chegar perto de oferecer um perfil fechado, mas não leva isso às últimas consequências. Acho isso uma atitude fiel ao seu amigo, detentor de uma obra tão complexa, e que nunca parece esgotar o que tem a dizer. A mais pura definição de um clássico.

*Li na única edição da obra, lançada pela Nova Fronteira em 1997 e que se encontra quase totalmente inacessível, assim como os filmes e os livros de Glauber (poxa, o cara tá precisando de um revival). O livro tem, além do conteúdo escrito, 3 cadernos de fotos de Rocha em diversos momentos de sua vida, prefácio por João Ubaldo Ribeiro e apresentação de João Carlos, um índice onomástico, um compêndio de frases, uma bibliografia, filmografia resumida, e um apêndice com seus 4 textos mais importantes (Romance de José Lins do Rego, O Western, A estética da fome e A estética do sonho), acompanhados de "Glauber criava uma floresta de símbolos"

**Tempo Glauber era um acervo administrado pela família do diretor dedicado à sua memória, e que guardava pôsteres, diários, cartas, excertos de jornais, textos pessoais, e os roteiros originais de seus filmes e seus roteiros. Foi fechado em 2017 e teve todo o material doado para a Cinemateca Brasileira, atual detentora da memorabilia
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