João 05/03/2011
O Fim da Busca
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Ao longo das quase duas mil e quinhentas páginas de “Em Busca do Tempo Perdido”, vemos a vida de um homem passar sob nossos olhos. Difícil não é o feito, mas demonstrar criticamente sua viabilidade. A possibilidade de êxito – tanto da obra quanto da análise - não reside na paciência de recolher infinitos dados; e sim na qualidade de sua organização. Mesmo que amanhã o leitor não se lembre de um único trecho, sobrevive o ritmo inconfundível da narrativa proustiana, representado por uma única palavra: busca. Nesse sentido, não seria absurdo lançar rapidamente uma hipótese sobre as condições de realização de tal obra partindo de um trecho curto.
Nas últimas páginas de “A Fugitiva”, a personagem Gilberte, paixão tortuosa da meninice do narrador, lhe diz:
“- Ainda no dia em que o encontrei à porta de sua casa, você continuava o mesmo de antigamente. Se soubesse como é que mudou pouco” (1)
Páginas atrás revelara-se a idade de outro amigo de juventude do narrador, o simpático Robert de Saint-Loupe, com seus sessenta e poucos anos. Ora, se considerarmos a força dos sofrimentos acumulados por Marcel (o nome “verdadeiro” do narrador proustiano), e o desconsolo de si mesmo quando fala de seu passado inalcançável, então podemos discordar das palavras de Gilberte. Porém, este mesmo olhar do narrador não muda essencialmente – irresistível do início ao fim. É evidente, portanto, a tensão que se estabelece entre a passagem sensível do tempo, e o olhar mais ou menos inalterável do narrador. O fato de tratar-se de memórias é insuficiente; a hipótese é que, na verdade, a própria substância da narrativa impõe de alguma maneira a perspectiva memorialista, reivindicando uma ausência fundamental, para não dizer distanciamento, daquele que narra.
Assim, a captação sensível do fluxo temporal aumenta à medida que algo se revela pouco provável. Noutras palavras, é impossível reconhecer este fluxo na própria vida, que, entretanto, revela-se verossímil na obra. Qualquer outro personagem da trama, na medida em que participa integralmente desta, não poderia, exatamente por isso, sequer percebê-la. Da mesma forma, generalizando de modo imprevisto, nem todos os indivíduos da França do início do séc. XX poderiam ter sido o escritor da Recherche; esta espécie de condição de exceção tanto do narrador quanto do escritor, deixa de ser compreensível, logo de saída, fora do meio que aparentemente nega: não se trata da excentricidade do escritor, assim como – repito – a forma memorialista não apenas determina, mas deixa igualmente determinar-se por seu conteúdo.
Trata-se de um espanto do irrealizável, com o que é absolutamente comum à vida, porém inconcebível fora da obra. A impressão não deixa de ocorrer mesmo quando é pouco racionalizada, mas, entretanto, não dá para resistir à seguinte indagação: até que ponto o impressionismo da leitura corrobora a própria miséria do mundo narrado na Recherche? Uma coisa é certa: não resta dúvida de que a típica carência dos personagens desta obra, e, conseqüentemente, dos leitores que não a percebem, guarda um inequívoco elemento de auto-engano. Proust não a poderia ter escrito antes de adquirir certa experiência de vida, ou melhor: antes de ter tido a certeza de que a vida como está não nos permite vivê-la.
Não esqueço que obra é tecida por referências mais ou menos diretas à vida do autor. Sofrimento, amizades frustradas, deuses decaídos, heróis envergonhados, em suma, aquilo que tanto Proust, quanto nós, leitores desconhecemos: unidade das experiências. Não esqueçam que é de uma obra literária que estamos tratando. Da obra de Proust, é possível dizer: “Ler é Viver”. Não deixa de ser irônico, porém quem discorda não é mais ‘livre’ por isso, mas, ao contrário, serve de combustível ao criador em sua capacidade de alçar voou sem sair do lugar.
Para terminar, é necessário dizer que o narrador da Recherche descobre, depois de anos de ostracismo, que o sentido de sua vida era a criação literária; chegando, assim, à mesma conclusão que o próprio Proust havia chegado ao iniciar sua obra. Mas, um outro final permanece em suspenso, com a seguinte afirmação ecoando no interior de uma velha catedral gótica: “O grande dia ainda está por vir”. Impressão que a obra suscita, mas que, partindo dela não é possível responder (2).
Notas:
1 – Proust, Marcel. A Fugitiva. Tradução: Carlos Drummond de Andrade – oitava edição. São Paulo: Globo, 1989 (Em Busca do Tempo Perdido; VI)
2 – É no que Drummond pensava, talvez, quando escreveu estes versos do poema “Museu da Inconfidência”, em Claro Enigma:
São palavras no chão / e memórias nos autos / as casas inda restam / os amores, mais não. (...) Muros pranteiam. Só. / Toda História é remorso.
João