Fabio Shiva 10/06/2021
Viva Rubem Fonseca!
Esse livro de contos foi publicado em 2017, quando o autor estava já contava 92 anos de muita e robusta literatura! Para mim, que sou um grande fã da prosa de Rubem Fonseca, tendo lido seus principais livros duas ou três vezes, esse primeiro contato com “Calibre 22” foi fonte de muitas emoções contraditórias.
Logo de cara, foi o estranhamento. Em “Pródromo”, quarto dentre os vinte e nove contos curtos que compõem “Calibre 22”, mal pude acreditar em meus olhos ao ler o trecho abaixo:
“Fomos a especialistas em (cito apenas alguns): alergia e imunologia; gastrenterologia, angiologia, cancerologia, cardiologia; hematologia e hemoterapia; endocrinologia, metabologia; homeopatia e infectologia. Fiz ecodoppler e... CHEGA!!!”
Quem se acostumou a admirar a narrativa seca e concisa de Rubem Fonseca não pode deixar de se escandalizar diante de uma palavra grafada em maiúsculas, e ainda por cima acompanhada por três pontos de exclamação! Para dar ideia do assombro que senti, imagine que você é um católico devoto assistindo à missa dominical, quando de repente o padre começa a cantar um funk proibidão! Tentando encontrar alguma explicação para essa bizarra aparição no sagrado texto de meu ídolo, lembro que ainda pensei: “Rubão continua transgressor, experimentando novas linguagens, só pode ser”.
Contudo em seguida o estranhamento foi dando lugar à consternação, quando fui me deparando com uma série de discrepâncias inaceitáveis em qualquer texto profissional, que dirá em algo saído da pena de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos! Encontrei falhas como frases ferindo a coesão textual, confusão com nome de uma personagem e até um cacófato. A essa altura, foi inevitável chegar à conclusão de que a idade provecta estava cobrando seu preço até mesmo ao privilegiado cérebro de Rubem Fonseca. Só não consegui entender até agora como essas falhas escaparam à revisão, que é uma fase imprescindível em qualquer publicação. Novamente buscando encontrar explicações para o inusitado, só pude imaginar que o sentimento de reverência pelo Grande Autor impediu o revisor de cumprir o seu dever e bulir no texto. Ou então, outra hipótese aventada por minha imaginação fértil, Rubem Fonseca era uma espécie de tirano, que não admitia que mexessem em uma vírgula de seus escritos.
Mas isso tudo foi apenas metade da viagem que tive ao embarcar na leitura de “Calibre 22”. O resto foi um sentimento crescente de respeito e admiração ainda maior pela jornada literária de um escritor que, do alto de seu pedestal de “maior escritor brasileiro vivo” (o que Rubem Fonseca foi indisputavelmente até sofrer um enfarte fatal em 15 de abril de 2020), continuou escrevendo aos 92 anos de idade, enfrentando corajosamente os desafios da velhice, sem se preocupar com o que pudessem dizer ou pensar. A leitura de “Calibre 22”, em resumo, entra em minha memória afetiva como testemunho da existência de um verdadeiro escritor, que escreveu porque não tinha outra opção, porque precisava escrever como precisava respirar. Essa necessidade visceral de escrever, só quem sente sabe o que é. Por isso expresso gratidão profunda ao grande Rubem Fonseca, por continuar sendo luminoso exemplo e inspiração em minha vida de escritor.
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