Ana Paula 08/07/2022
Querido Deus. Queridas estrela, queridas árvore, querido céu, querida gente. Querido tudo. Querido Deus,
Celie escreve cartas para Deus, e ao modo de figurar Deus na imagem de um homem velho e branco, Celie é por ele também sobrepujada. Mas, escrever, mesmo sem interlocutor, é acima de tudo abrir um diálogo consigo mesma. E nesta introspecção, que se fez necessária como mecanismo de sobrevivência tamanha crueldade externa, Celie desvela sua humanidade, seu potencial de amar e ser. Aquém daquilo que o mundo diz ela ser e da objetificação constante a qual foi sistematicamente submetida, ela de certa forma inocente vai quebrando rótulos um a um, se revelando aos olhos atônitos do leitor, uma mulher muito mais forte do que a julgam ser.
Nesta prestigiada obra da literatura mundial, Alice Walker, com singeleza de palavras e formas, transpõem o leitor para a mente e coração de uma mulher preta no início do século XX. Que experiência! Questões de raça e classe são abordadas ao longo da história, muito penosa, da vida de Celie e das pessoas ao seu redor. Além de questões sociais, incluindo discussões sobre o papel da mulher na sociedade, sob o prisma de personagens femininas complexas e plurais: Shug Avery, Nettie, Sofia, Mary Agnes e a própria Celie. A obra traz, ainda, discussões metafísicas muito interessantes, a respeito da figuração de Deus, da religião, e da forma de se experienciar a espiritualidade. Discussão que toma grande proporção na obra, recebendo como produto seu título “a cor púrpura” como uma belíssima metáfora da relação com o divino proposta por Shug Avery e Celie.
“Mas mais do que tudo o mais, Deus ama a adimiração.
Você tá dizendo que Deus é vaidoso? eu perguntei.
Não, ela falou. Num é vaidoso, só quer repartir uma coisa boa. Eu acho que Deus deve ficar fora de si se você passa pela cor púrpura num campo qualquer e nem repara.”
Este é um livro que não se esgota numa primeira leitura, é emocionante, é sobre dor, sim, mas sobretudo sobre o amor, romântico e não romântico, sobre amizade, irmandade, amor à vida e amor próprio, a apropriação do sentido de si e da vida.