Livros da Julie 14/02/2020Retrato de uma ditadura e a vida de uma correspondente de guerra-----
"- (...) ninguém diz o que pensa, ninguém pode dizer o que pensa de verdade."
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"- Não falamos nem entre nós. Não confiamos em ninguém, sequer nos nossos amigos íntimos."
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"O medo estava tão presente depois de três décadas de brutalidades que as pessoas tinham se transformado no seu próprio vigilante."
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"- Os iraquianos sempre devoraram livros: são o nosso alimento e, além do amor, é a única coisa de que necessitamos."
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"O Egito escreve, o Líbano imprime e o Iraque lê."
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"- (...) Porque a vida neste país é um sofrimento, como você sabe, e os livros me salvam."
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"- (...) No Iraque estamos preparados para a guerra como vocês, no seu país nórdico, estão preparados para o inverno."
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"- Alá decide o nosso destino, mas, por vezes, nós temos que fazer um pouco a nossa parte."
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"- (...) Ao nos confrontarmos com a morte é importante não ter nada pendente com ninguém."
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"- (...) Estamos esperando, experimentando a morte e a vida ao mesmo tempo."
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"- (...) Em Bagdá ninguém sofre por causa da guerra; bem, tirando os que são atingidos pelos mísseis."
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"- (...) Aprendi a me comportar como um bom iraquiano; ou seja, aprendi a mentir sempre e em toda a parte."
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"- É claro que é triste ter havido mortos., mas é o preço que tínhamos que pagar; e não é alto demais. Pense no medo que desapareceu e no fato de podermos estar aqui conversando. Isso é que é importante."
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101 Dias em Bagdá foi o livro escolhido para o mês de fevereiro, seguindo o #desafioleiamulheres2020, promovido pelo @_leiamulheres (não ficção). Foi uma leitura providencial depois de Plano de Ataque, pois se passa pouco tempo depois do 11 de setembro.
Åsne Seierstad (que também escreveu o famoso O Livreiro de Cabul, disponível aqui, na @livrosdajulie) fala sobre o período que passou em Bagdá como correspondente para jornais, rádios e redes de televisão europeus, entre janeiro e abril de 2003, justamente quando ocorre a invasão americana.
Ela estava lá para tentar obter in loco as impressões dos cidadãos iraquianos comuns, suas opiniões sobre a guerra iminente e sobre Saddam Hussein e o governo. Contudo, os longos anos de ditadura haviam transformado duramente o povo, doutrinando-os a idolatrar cegamente aquele a quem consideravam o pai de todo o Iraque ou a se calar irremediavelmente sobre o que pensavam, com um medo intransponível de serem delatados.
Além disso, havia a censura imposta pelo Ministério da Informação, que escrevia tudo o que os jornais iraquianos publicavam sobre o país e que vigiava atentamente tudo o que era escrito pelos correspondentes para o exterior, para que não houvesse nenhuma menção direta ao regime existente. Também era obrigatória a utilização de um intérprete designado pelo Ministério, que controlava onde, quando e com quem podiam ser feitas entrevistas. Sem falar da aprovação necessária para ir a qualquer lugar, dentro ou fora de Bagdá.
Assim, atrapalhada em seus objetivos pela falta de informação isenta, pela enorme burocracia iraquiana e pela presença constante do intérprete, Åsne basicamente se limitava a narrar os debates na ONU sobre a existência ou não de armas nucleares no Iraque, os pronunciamentos americanos e as reações oficiais dos órgãos de governo iraquianos. Demorou até que ela conseguisse abrandar as amarras que limitavam sua atuação jornalística e pudesse coletar relatos, sensações e opiniões livres de censura de alguns poucos iraquianos corajosos.
A autora busca abordar as diferenças entre o Iraque antes e depois de Saddam Hussein. O contraste entre a rica Bagdá da era medieval, a Bagdá com os melhores sistemas escolar e sanitário do mundo árabe nos anos 70 e a falta de infraestrutura no país e a economia em declínio desde a Guerra do Golfo, com sanções, embargos, altas taxas de desnutrição e mortalidade infantil.
Antes da guerra, a autora também trata da perda de antiguidades para os museus europeus, do funcionamento da bolsa de valores, dos mercados de leilões, da vida de judeus e cristãos no Iraque, da chegada de organizações pacifistas e escudos humanos ao país, dos preparativos para a guerra e da saída de iraquianos para a Jordânia e outros países vizinhos. Durante, começam os relatos dos bombardeios, dos prédios destruídos, dos feridos levados aos hospitais, dos civis mortos, da inexistência de informações sobre as baixas militares, do ataque a jornalistas, os rumores e a desinformação. Por fim, depois da guerra, as opiniões divergentes sobre a vitória, as pilhagens, as revelações sobre os desaparecimentos dos inimigos do antigo regime, a visita ao luxuoso Palácio Presidencial e a tão sonhada liberdade de, enfim, poder dizer tudo o que se pensa, sem medo de tortura, prisão ou morte.
Em um misto de jornalismo e prosa, é uma obra que traz dois livros em um. De um lado, um relato fidedigno de uma correspondente de guerra, seu cotidiano, seus receios e medos e os riscos corridos, conscientes ou não. De outro, o retrato de um povo sofrido, que nem se preocupava mais em escolher lados, mas que via na invasão a esperança de que algo finalmente mudasse no país.
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