jiangslore 24/02/2024
[4/5]
"Os Despossuídos" foi o segundo livro do Ciclo Hainish que li - o primeiro foi "A Mão Esquerda da Escuridão" - e, sem dúvidas, gostei muito da leitura. O livro é permeado de reflexões e discussões muito provocativas, a narrativa é bem estruturada, os personagens são interessantes de acompanhar. Há algumas questões que, apesar de isoladas, considero relevantes o suficiente para serem entendidas como pontos negativos. No entanto, no geral, a experiência foi boa. Quanto mais leio da Ursula K. Le Guin, mais fico interessada em sua obra; e acho muito pertinente recomendá-la para outras pessoas.
Algo que gostei bastante no livro é sua estrutura. Depois de ler dois livros de Ursula K. Le Guin, acredito que posso afirmar que uma característica que não é incomum em suas obras é estruturá-las de acordo com suas temáticas. Em "Os Despossuídos" é possível perceber que a Teoria da Simultaneidade de Shevek é um catalizador para muitos dos eventos da obra, mas, ao mesmo tempo, a ideia de desafiar os conceitos de passado, presente e futuro é reproduzida na narrativa.
Durante a leitura, o leitor encontra na obra duas narrativas paralelas da vida de Shevek: uma, a partir do momento em que ele embarca em uma aeronave para Urras, e outra, a partir de sua infância. Essas duas narrativas podem ser entendidas como o "passado" e o "presente" dele, mas também podem ser seu "passado" e "futuro", que possuem como ponto de virada um "presente" que só é exposto ao final do livro. Embora minhas descrições possam parecer desalinhadas, eu não achei que a estrutura do livro foi confusa (na verdade, acredito que ela trouxe um ritmo muito bom para a narrativa). As duas narrativas estão separadas por capítulos, o que significa que nenhum capítulo possui grandes alterações cronológicas.
Entretanto, uma crítica possível é o fato de que, ao encarar a obra como um todo, após a conclusão da leitura, pode parecer um pouco surpreendente (e até um pouco desconexo) que Shevek tenha enfrentado certas coisas em Urras depois do que ele passou em Anarres. Acredito que há explicações para isso, mas elas não são tão naturais quanto poderiam ser, na minha opinião.
Além disso, é evidente o modo que a Guerra Fria permeia a construção de mundo - que é ótima, pois, apesar de ser mais alegórica do que detalhada, ela se presta aos objetivos necessários para que a obra funcione bem - e as próprias reflexões do protagonista. É muito interessante, como uma leitora que vive em um mundo pós-Guerra Fria e certamente ainda cheio de muros, observar a crença de Shevek de que a possibilidade de troca de informações de modo instantâneo é um passo para que os muros deixem de existir - pois, no mundo em que ele estava inserido, da mesma forma que ocorria durante a Guerra Fria, os muros poderiam até ser abstratos e estarem localizados no mundo das ideias; mas eles também eram associados a locais específicos, que, em "Os Despossuídos", são Anarres e Urras.
No entanto, atualmente, nós certamente possuímos o que Shevek tanto desejava, ao menos em escala planetária: a corrente de informações entre os mais diversos cantos do planeta é praticamente ilimitada e instantânea. Mas nós continuamos tendo muros - eles só são diferentes, e muito menos associados a locais concretos do que já foram. Acredito que é interessante falar sobre isso porque demonstra que, apesar de "Os Despossuídos" ser um produto evidente do tempo em que foi escrito, ele ainda traz muito que pode ser pensado dentro do contexto do mundo atual; e acredito que trazer essa reflexão torna Shevek muito mais humano e fácil de entender.
Em "Os Despossuídos", a narração é em terceira pessoa, mas Shevek é o personagem que o leitor acompanha pela maior parte do livro. Isso significa que o desenvolvimento dele acaba sendo bem mais profundo do que o dos outros personagens. Entretanto, os personagens secundários conseguem ser suficientemente desenvolvidos - os eventos dos quais eles participam, a forma que agem e o que eles representam faz com que o leitor possa ter uma boa ideia de como eles são; além disso, as relações que eles têm com o protagonista sempre são bem estabelecidas.
Já que Shevek é o protagonista, acredito que é importante me estender um pouco mais nas minhas opiniões sobre ele; até porque é nelas que está o que eu considerei ser o grande ponto negativo da obra. Não é que eu não tenha gostado dele - na verdade, durante a maior parte da leitura, considerei-o um personagem extremamente interessante, e, como a presença dele é fundamental para o andamento do enredo, acredito que isso foi um fator determinante para que eu gostasse do livro.
No início da leitura, eu me perguntei por que um livro que - entre outras coisas - fala de questões sexuais e de gênero tinha como personagem principal um homem. Obviamente, não quero dizer com isso que homens não podem protagonizar obras desse tipo; mas Ursula, pelo pouco que já li dela, me parece ser uma escritora extremamente meticulosa e, obviamente, ela é uma mulher. Então a escolha de narrar "Os Despossuídos" por um ponto de vista masculino não me pareceu nem um pouco arbitrária. O que fui percebendo no decorrer da leitura é que Shevek é um homem que foi cercado e influenciado por mulheres a vida toda. Só um personagem como ele (que é homem, portanto, tem acesso a tudo que quiser em Urras, mas que entende a importância das mulheres porque elas sempre impactaram em sua vida) poderia narrar "Os Despossuídos" da forma que ele foi narrado.
Apesar de todas essas opiniões positivas, acredito que há um trecho específico do livro que não pode ser ignorado. Não vou entrar em detalhes sobre o que ocorre nele: basta dizer que ele retrata algo moralmente errado e é o momento no qual culmina o tratamento de uma personagem feminina específica. Acredito que, até certo ponto, o trecho "faz sentido". Ele pode ser "explicado", e fica evidente na narrativa que ele não foi escrito para ser algo "bom". No entanto, apesar de não ser retratado como positivo, o momento em questão, na minha opinião, foi abordado levianamente demais. Uma coisa é uma personagem estar inserida em uma sociedade que a trata como "objeto" e tentar encontrar "vantagens" neste papel. Outra coisa é o protagonista, e por extensão, a própria narrativa, tratá-la como "objeto" por não entender a profundidade do que ela pode pensar e sentir sobre algo.
Mesmo assim, acredito que a leitura é boa e vale muito a pena; em especial devido às discussões que podem ser levantadas com relação à obra. Nem todas as conclusões que podemos chegar sobre o livro e a abordagem de suas temáticas são positivas, mas acredito que em "Os Despossuídos" o que importa mais é a jornada. Em outras palavras, o que importa mais é a discussão, é entender a profundidade de certas coisas, e não chegar em conclusões sobre elas. Por isso, como mencionei inicialmente, recomendo muito a leitura. Só acrescento que ela (como muitas vezes ocorre em bons livros) deve ser feita criticamente.